MUNICÍPIO E PARTICIPAÇÃO POPULAR
The municipality and the popular participation
Resumo
I – A participação nas origens do Município brasileiroA participação dos governados nas decisões dos governantes está intimamente ligada às origens e à própria essência do Município brasileiro. Durante muito tempo perdurou na doutrina brasileira uma discussão sobre se o Município brasileiro se originara do município romano ou do conselho português, até que, derribando ambas as teorias, Ataliba Nogueira afirmou categoricamente: “Eis a origem do município no Brasil. É ele sociedade natural. Não foi criação do estado, menos ainda circunscrição por ele instituída. Brotou com a maior naturalidade da vida social e da povoação da terra”. (“Teoria do Município”, RDP 6/7).
Em razão disso é que o consagrado mestre conceitua o Município como “associação natural e legal dos vizinhos para obtenção, no respectivo termo, dos serviços comuns”. Pela sua origem é uma associação natural e pelo reconhecimento do estado tornou-se, também, uma associação legal.
É certo, pois, que o Município nasceu como fruto da solidariedade, do auxílio mútuo e da realização dos interesses comuns. Vale lembrar, ainda, que por força da vastidão do território brasileiro os núcleos populacionais se localizavam a distâncias enormes uns dos outros e tinham pouquíssima comunicação entre si, sem falar do quase inexistente apoio da metrópole.
Na verdade os núcleos urbanos tinham que se bastar por si mesmos, o que reforçava a solidariedade entre os habitantes e propiciava a representatividade de seus dirigentes.
O governo era exercido pela Câmara Municipal, que se incumbia de todos os assuntos de ordem legal, tanto de natureza legislativa (posturas), como administrativas (obras e serviços) e até mesmo judiciárias, tudo isso na maior confusão e sem qualquer correlação com a ideia moderna da separação dos poderes.
Sendo a população composta por grandes proprietários rurais e uma massa de escravos e trabalhadores inteiramente dependentes da nobreza fundiária, é bem verdade que nem se poderia cogitar de sufrágio universal, mas, de todo modo, sempre se procedeu à escolha dos governantes por eleição.
Conforme relata Victor Nunes Leal, a eletividade recaía sobre os “homens bons”, expressão de conteúdo difuso e variável mas que abrangia os proprietários rurais, os que já haviam ocupado cargos na municipalidade e os que costumavam andar na governança da terra (Coronelismo, enxada e voto, 2ª ed., 1975, p. 106).
Logo adiante pondera, ainda, o consagrado autor: “O princípio da eletividade das câmaras respondia, em grande parte, às conveniências da Coroa, e as próprias Ordenações se preocupavam em impedir que os eleitos recusassem o mandato, que era frequentemente um encargo”.
Tisnado por uma revoltante injustiça social e bem ou mal constituído, o governo local era indubitavelmente representativo. As pessoas que seriam mais diretamente atingidas pelas ações governamentais efetivamente participavam das decisões dos governantes.
Essa tradição secular de autogoverno local e de escolha direta de seus governantes talvez explique o forte sentimento municipalista existente no Brasil e o fato e estar a autonomia municipal erigida à categoria de princípio na Constituição Federal (LGL\1988\3).
Reconheça-se que o apego à comunidade local não é privilégio dos brasileiros. Leslie Lipson (Os grandes problemas da ciência política, Zahar, 1967, p. 365) dá um caráter universal a esse fato e chega a dizer: “Sentimentos comuns de orgulho e lealdade, atitudes de competição e de ciosas rivalidades prontamente se ligam a essas unidades espaciais. Assim é que as cidades, grandes ou pequenas, são suscetíveis de originar o patriotismo urbano de seus moradores”.
No Brasil, o Município é pessoa jurídica de direito público interno dotado de capacidade política. Tem sua autonomia e sua esfera de competências prevista a nível da Constituição Federal (LGL\1988\3), que assegura (com algumas exceções) a escolha direta de seus governantes, conforme os postulados do regime representativo.
O Município é a célula política da organização nacional. Nessa condição oferece oportunidade de participação popular em nível bem superior ao das unidades maiores. Salvo nos grandes aglomerados das regiões metropolitanas, há uma relativa homogeneidade na composição de cada comunidade local, havendo, pelo menos, maior possibilidade de identificação dos interesses comuns e dos meios para sua realização.
II – O decréscimo do nível de participação e a crise dos instrumentos tradicionais
Evidentemente, com o decorrer do tempo, os componentes da população brasileira foram se alterando. A simplicidade e a quase estratificação dos tempos coloniais cedem lugar à complexidade e ao dinamismo da sociedade brasileira atual.
Ao longo desse caminho a representatividade governamental foi decaindo paulatinamente. A criação indiscriminada de Municípios (muitos deles francamente inviáveis), as novas relações econômicas (a industrialização), os grandes aglomerados urbanos, a imigração, as migrações internas, além de uma pluralidade de outros fenômenos, tudo isso contribuiu para aumentar, cada vez mais, a distância entre governantes e governados.
A situação se agravou nos últimos tempos por força do violento processo de urbanização, que não foi acompanhado da necessária adaptação das instituições governamentais, trazendo como consequência, dentre outras, o aumento das disparidades entre as diversas regiões e entre as classes sociais.
Disto resultou que situações de nababesca opulência convivem com situações de completa penúria e extrema miséria, gerando inevitáveis tensões.
O colapso total se deu com a ocorrência do movimento militar de 1964 que, na verdade, acabou de fato com a federação, a república e o sistema representativo (muito embora isso tenha sido formalmente mantido), afastando o povo, de vez e completamente, de qualquer função governamental, criando um fosso largo e profundo entre o estado e a nação.
Todos os poderes governamentais se concentraram nas mãos de um homem, que era formalmente designado como Presidente da República, mas que era dotado de poderes absolutos e incontrastáveis, senhor da vida e da morte de instituições, entidades e seres humanos.
O Poder Judiciário, é verdade, continuou existindo, mas seus membros foram despojados das garantias destinadas a assegurar a sua independência. Além disso, certos assuntos foram expressamente declarados imunes de qualquer apreciação judicial. Até hoje em dia o Poder Judiciário, como instituição, depende do Executivo, que decide (com absurda discricionariedade) sobre o seu orçamento, e os juízes, como funcionários de carreira, dependem, para sua evolução funcional, da simpatia do Chefe do Executivo.
O Poder Legislativo sentiu com maior intensidade o impacto da nova ordem, tendo sido até mesmo fechado em alguns períodos de tempo. Cuidou-se de aviltar a sua representatividade por meio de um sistema eleitoral talhado para assegurar sempre a maioria governista (em caso de “acidente” bastaria cassar o mandato de parlamentares da oposição em número suficiente, como deveras ocorreu). Além disso, certos assuntos foram retirados do poder de decisão dos legisladores (exemplo: o orçamento) ao mesmo tempo em que o Executivo era autorizado a legislar por meio de decretos-leis.
Conforme assinala o insigne Paulo Bonavides (em artigo sobre “A crise do Legislativo no Brasil”, publicado no Suplemento do jornal O Estado de São Paulo, de 12.4.81) até o processo legislativo foi vilipendiado: “Um dos mais eficazes expedientes imaginados para afiançar a ditadura executiva no âmbito da competência parlamentar, fazendo da representatividade das casas do Congresso mera ficção, é a aprovação das leis por decurso de prazo. O governo por esse meio poupa suas maiorias dóceis a certos constrangimentos que poderiam impopularizá-las na votação de leis repulsadas pela opinião pública mas de inteira conveniência aos desígnios oportunistas e casuísticos do poder”.
Os partidos políticos antigamente existentes (cuja representatividade, em alguns casos, era realmente insignificante) foram extintos. Em seu lugar foram criadas (de cima para baixo, artificialmente) duas agremiações distintas a substituí-los. Mas uma delas se destinava a apoiar o governo e, por isso, tinha a maioria sempre assegurada. A outra não tinha acesso ao poder e se destinava a fazer oposição, na medida consentida pelo governo. Para evitar problemas foi instituída a figura da fidelidade partidária e a propaganda eleitoral foi drasticamente contida (exemplo: somente o governo pode usar a televisão para fazer propaganda eleitoral).
Os sindicatos de trabalhadores, que estão integrados na estrutura do Ministério do Trabalho, passaram a ser dirigidos por interventores federais. Foi terminantemente proibida a greve e os aumentos de salários obedeciam a índices oficiais, que, invariavelmente, estavam abaixo dos índices de inflação.
A representação estudantil foi limitada a questões administrativas da própria escola, sendo absolutamente proibida qualquer atividade ou manifestação de caráter político. A direção dos órgãos oficiais de representação estudantil somente era acessível a alunos que não fossem considerados inconvenientes pela diretoria da unidade escolar.
Em síntese, foi praticamente aniquilado o direito de reunião. As tentativas de reunião e de associação ou eram diretamente reprimidas (pela força ou pela aplicação de sanções de todas as espécies aos que delas participassem) ou, então, eram frustradas pela infiltração dos chamados “agentes de segurança”.
Nesse clima, positivamente não havia como falar-se em participação. Mas, assim como semente bíblica, foi preciso que ela morresse para que pudesse renascer.
III – A reação popular incipiente
Foram proféticos os representantes dos treze estados que em 4.7.1776, na declaração de independência dos EUA, afirmaram: Tomamos como auto evidentes as verdades de que todos os homens são criados iguais e de que são dotados por seu criador de certos inalienáveis, entre os quais estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Para assegurar esses direitos foram instituídos os governos, cujos poderes legítimos derivam do consentimento dos governados.
A participação é um direito natural. A sua negação torna ilegítimo qualquer governo e o condena irremediavelmente ao fracasso. Por mais reprimida que seja, atingindo as raias da extinção, ela tende a renascer, a se renovar e a se desenvolver, acabando por vencer os usurpadores do poder, em maior ou menor tempo, paulatinamente, por meios pacíficos sempre que possível, ou através do legítimo exercício do direito de revolução, se não houver outra alternativa.
No Brasil já está desenvolvendo um processo de restauração da participação democrática que poderá levar à superação do conflito entre o estado e a nação e à completa normalidade institucional.
Vislumbra-se e já se transita pelo caminho da reconstrução por meios pacíficos, não obstante, paradoxalmente, isso seja feito com muita luta.
A descrição notável, bastante completa e bem detalhada desse fenômeno figura numa obra recém editada sob o título “São Paulo: o povo em movimento”. Trata-se de um trabalho de pesquisa e estudo organizado por Paul Singer e Vinicius Caldeira Brant com a colaboração de outros consagrados integrantes do CEBRAP – Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Nessa obra nos abeberamos para tecer as considerações que se seguem. As transcrições literais assinaladas foram retiradas dessa obra, motivo pelo qual nos limitaremos a indicar as páginas.
“A maior parte dos movimentos populares atuais for organizada de forma defensiva. Depois de destruídos ou subordinados os movimentos existentes antes de 1964, houve uma extrema vigilância do governo para evitar o surgimento de novas organizações populares. Contra as lideranças, novas ou antigas, acionou-se inúmeras vezes a Lei de Segurança Nacional (LGL\1983\22), além da brutal repressão extralegal dos órgãos de segurança que chegava facilmente às torturas e aos assassinatos. A ação repressiva tinha duplo papel: de um lado, disseminava o terror, através dos castigos exemplares aos opositores do regime; de outro, dificultava a articulação entre pessoas e grupos interessados nas lutas populares.
O bloqueio dos canais institucionais de representação popular – como os partidos políticos, as câmaras legislativas, os sindicatos e associações de massas – estimulou o uso dos laços primários de solidariedade na sobrevivência diária da população. Relações de vizinhança, parentesco, compadrio ou amizade, permitam a proteção imediata dos indivíduos diante de um clima social de medo. Foi em boa parte o desenvolvimento desses laços diretos entre pessoas, que confiavam umas nas outras, que deu origem a vários movimentos de base. Associações comunitárias, grupos políticos de crescimento molecular, comissões de fábrica, movimentos culturais, clubes de mães ou de jovens, grupos de oposição sindical, tendências estudantis, enfim uma variada gama de movimentos localizados e dispersos fundamentava-se na confiança direta entre os seus membros e na consciência de seu desamparo diante das instituições mais vastas” (pp. 13 e 14).
Essas associações naturais que se iam formando cuidavam de uma pluralidade de assuntos, dentre os quais se destacam o movimento sindical lutando pela melhoria das condições de vida do trabalhador, o movimento feminista postulando o reconhecimento e a correção das injustiças que afetam a mulher na sociedade moderna, o movimento negro visando denunciar e aniquilar o que ainda resta do preconceito racial.
Cabe, entretanto, destacar que os movimentos de maior pujança e que logo alcançaram viabilidade e concreção foram aqueles ligados à melhoria das condições de vida das comunidades locais tais como os se ocupavam do abastecimento de gêneros alimentícios em face da carestia, os que cuidavam dos problemas relativos à habitação popular e ao loteamento clandestino, ou da abertura de creches, ou de questões relacionas ao transporte coletivo urbano, etc. Vale dizer, setores nos quais se fazia sentir a ausência ou a insuficiência da administração municipal.
Nestes movimentos tipicamente municipais é que vamos concentrar nossa atenção. Antes, porém, cumpre assinalar alguns pontos.
Inicialmente cabe salientar a importância decisiva representada pelo ostensivo apoio da opinião pública e de algumas instituições tradicionais de inegável prestígio, tais como a Igreja Católica, a Associação Brasileira de Imprensa, a Ordem dos Advogados do Brasil.
Não pode ser esquecida, também, a participação dos estudantes. O movimento estudantil, com sua incrível ousadia, desafiando abertamente os organismos de repressão, criou um clima favorável à manifestação de outros movimentos sociais. Paradoxalmente a participação de estudantes em grandes manifestações públicas de outros movimentos populares acabou gerando conflitos, pois se de um lado lhes dava maior amplitude, por outro lado servia de pretexto para que se questionasse a autenticidade e trazia o risco de descaracterizar as manifestações.
O fato é que pouco a pouco foram se consolidando os grupos naturalmente surgidos das bases, os quais foram pouco a pouco se tornando mais confiantes em sua própria atuação.
“Todos sabiam, e o governo não deixava que ninguém esquecesse, que a cada protesto corresponderia uma represália: cassação de mandato político ou sindical, perda de emprego, expulsão da escola, intervenção em associações e órgãos de representação, recrudescimento da censura, prisão, tortura ou assassinato – represálias nem sempre graduadas segundo a importância do ato oposicionista, mas, muitas vezes, segundo os humores dos perseguidores e os azares dos perseguidos. Muitas das manifestações de opinião fizeram-se em clima de incerteza, em que o medo tinha de ser vencido pela indignação ou pelo desespero” (p. 22).
“Foi, por outro lado, a própria repressão extremada que criou vínculos de solidariedade entre movimentos de natureza diversa e indivíduos com posições políticas e ideológicas diferentes” (p. 23).
Não há dúvida de que à escalada da violência oficial correspondia a crescente solidificação dos vínculos entre pessoas de todas as tendências e ideologias. Aliás, a história está repleta de exemplos como esse, bastando lembrar os movimentos de resistência surgidos durante a Segunda Guerra Mundial.
No tocante aos movimentos tipicamente municipais, além desse fator há que se assinalar a existência de uma experiência anterior em matéria de participação popular. As novas formas de participação não se originaram nem derivaram dos grupos que existiam antes de 1964, mas, sem dúvidas, tinham pelo menos um paradigma que indicava como evitar os erros do passado.
IV – As Sociedades de Amigos de Bairros
A reunião dos moradores de determinados bairros, em entidades formalmente constituídas, com a finalidade de reivindicar melhoramentos para as respectivas parcelas da cidade tem suas origens na década de cinquenta, num período de normalidade constitucional.
Os partidos políticos existiam e estavam em pleno funcionamento. Realizavam-se normalmente eleições tanto para o executivo como para o Legislativo em todas as esferas de governo (federal, estadual e municipal).
Havia a possibilidade de participação dos cidadãos através dos instrumentos tradicionais do sistema representativo, mais isso se tornara insuficiente, em face das mutações sociais decorrentes do desenvolvimento industrial.
Iniciava-se o processo de crescimento das cidades, que levou ao surgimento dos grandes núcleos urbanos. A Administração Pública não estava aparelhada para suprir a demanda crescente de obras e serviços.
“Para melhor compreensão destas demandas, convém recordar que nas primeiras cidades industriais não havia transporte mecanizado, comunicação telefônica, coleta de lixo, redes de água, de esgoto, de iluminação pública, escolas públicas nem postos de atendimento médico e de policiamento. Exceto uma pequena maioria rica, a população andava a pé, colhia água em poços, atirava detritos nas ruas e estava exposta aos ataques de doenças infecciosas e de malfeitores. As condições de vida eram espantosamente más e se traduziam em mortalidade geral e infantil tão alta que a situação frequentemente chegava às raias da calamidade pública. A introdução de todos estes serviços públicos, que começou a se dar paulatinamente a partir da segunda metade do século passado nas cidades britânicas primeiro, nos demais depois, se deve ao reconhecimento público de que não há outra maneira de tornar a cidade moderna habitável e portanto um sistema socioeconômico dotado de um mínimo de viabilidade. Condução e iluminação públicas, água encanada e esgoto, posto de saúde e de policiamento longe de serem privilégios são necessidades básicas à sobrevivência da população urbana do mesmo modo como são o alimento, o vestuário e a habitação” (pp. 83 e 84).
A maior parte dessas demandas deveria ser atendida pelo Município, que realmente não tinha nem estrutura administrativa nem recursos para atendê-los.
Não se pode dizer, entretanto, que havia uma carência absoluta de recursos. Obras e serviços públicos talvez de menor necessidade eram atendidos. Isto porque a fixação de prioridades raramente era ditada por critérios objetivos, mas, sim, por critérios políticos. Nesse processo levavam vantagem as camadas sociais mais próximas do poder e de maior capacidade econômica, que dispunham de canais para suas reivindicações e podiam pagar pelos melhoramentos recebidos.
As camadas sociais de menor capacidade econômica somente tinham acesso à habitação exatamente nas áreas periféricas, desprovidas de todos ou de quase todos os serviços urbanos essenciais.
Ocorre, porém, que nessa periferia abandonada e desassistida concentravam-se grandes massas populacionais, ou seja, um enorme contingente eleitoral que não passou desapercebido pelos postulantes de votos.
A perfeita junção dos interesses de uma massa carente de representantes e intermediários de suas reivindicações com os interesses de políticos ávidos por representá-la e defende-la (com maior ou menos sinceridade) levou ao surgimento das Sociedades de Amigos de Bairro.
“As SABs funcionavam como elos de ligação entre a população carente de serviços básicos e o poder público, que tinha possibilidades de atender, pelo menos em parte, às reivindicações assim apresentadas. Tratava-se, no fundo, de trocar as obras e os serviços, financiados pelo erário público, pelo voto dos beneficiários” (p. 87).
Porém, depois de 1964 o voto perdeu sua importância. O Município se enfraqueceu. Nas capitais (onde floresciam as SABs) os Prefeitos não mais eram eleitos. O Legislativo, que já em crise como instituição, atingiu o ponto mínimo de significação a nível municipal. Adentrava-se a era do predomínio dos tecnocratas avessos a qualquer participação popular. O poder político e os recursos econômicos se concentraram exclusivamente no Executivo federal.
A conjugação de interesses que justificou o surgimento das SABs não mais existia. As populações periféricas continuavam carentes, mas estavam emudecidas pela repressão e tinham noção de que o seu poder de barganha estava aniquilado. Salvo disputas pessoas entre este ou aquele candidato a Vereador, não havia grande interesse na captação do voto, pois a manipulação constante da legislação eleitoral servia para alterar as regras do jogo, de forma a garantir sempre a hegemonia da agremiação política situacionista.
Pouco a pouco as SABs se tornaram feudos eleitorais de determinados vereadores governistas. Meros escritórios eleitorais destinados à distribuição de favores pessoais.
Diante disso as SABs tiveram sua função totalmente invertida e passaram a funcionar como representantes do governo junto às populações. Eram convocadas para formalizar o pedido de obras e serviços que já estavam adrede decididos pela Administração e, muito especialmente, para organizar louvações e manifestações de apoio a autoridades eventualmente necessitadas de exibir um apoio popular.
A capacidade de aglutinação das SABs diminuiu na medida em que sua capacidade de reivindicar ficou limitada (ou condicionada) ao que o governo estava disposto a conceder. O povo acabou se afastando das SABs, mesmo porque estas não mais precisavam dele, dado que sua razão de ser não derivava das bases, mas da cúpula governamental.
Muitas Sociedades de Amigos de Bairros ainda sobrevivem, mesmo porque o apoio a algum político situacionista ainda é meio de se obter alguma coisa. Elas perderam sua significação política e deixaram de ser instrumentos de participação. Hoje em dia são mais entidades destinadas a promover reuniões sociais e atividades esportivas ou recreativas do que qualquer outra coisa.
Tiveram muita importância no passado e talvez venham a retomar a significação perdida quando, em algum momento do futuro, vier a ser restaurado o sistema político-eleitoral. Afinal, no dia em que houver eleições livres o voto novamente terá valor e, assim, poderá servir como elemento de barganha.
V – As comunidades eclesiais de base
Já foi dito, de passagem, que o apoio firme e ostensivo de entidades tradicionais, portadoras de relativa imunidade à repressão, foi decisivo para o desenvolvimento dos novos movimentos de participação popular. Entre essas instituições merece especialíssimo destaque a Igreja Católica.
A profunda transformação por que passou a Igreja nos últimos tempos, somada às mutações do próprio Estado, levou a uma completa reformulação das relações entre ambos.
“Em sua fase atual, o Estado, no capitalismo dependente, tende a dispensar a ideologia religiosa, fundando sua legitimidade no crescimento econômico e na doutrina da segurança nacional. Igualmente, o antagonismo das classes, com a acentuada pauperização das camadas trabalhadoras, dificulta a difusão de uma ideologia da conciliação social de tipo organicista que atribuía a cada classe de cem o valor de um órgão essencial ao funcionamento do todo. Neste contexto, decrescem os interesses recíprocos de colaboração entre Igreja e Estado e o catolicismo se defronta, em sua prática cotidiana, com a massa de explorados e excluídos. A opção de parcela crescente da Igreja católica é ir buscar na vida do Cristo, a inspiração que estabeleça seu privilegiado relacionamento com estas camadas mais pobres da população. Nesta direção, elaborou-se na América Latina um novo pensamento teológico que procura se fundamentar na análise sociológica da realidade social e na releitura dos Evangelhos. Sobretudo neste pensamento articula-se a reorganização dos intelectuais católicos que buscam um relacionamento orgânico com classes populares” (p. 60).
Desde os tempos da mais violenta repressão, a Igreja ofereceu abrigo, apoio e proteção aos movimentos populares de resistência ao Estado e aos indivíduos perseguidos, independentemente de qualquer vinculação religiosa. Nenhuma outra instituição teria recursos e independência para isso.
O fato é que ao ceder os templos e salões paroquiais para a realização de reuniões e debates, a Igreja não só estava fornecendo amparo material, mas estava, também, emprestando a esses movimentos o enorme prestígio de que desfruta no país e no exterior.
Além disso, a Igreja se engajou diretamente, como instituição, em seu próprio nome, na defesa dos direitos humanos. A arquidiocese de São Paulo, atuando por intermédio da Comissão de Justiça e Paz, obteve significativas vitórias na luta contra a violência e a tortura, e em favor de presos políticos e comuns, menores carenciados, exilados etc., tudo isso como reto e pleno exercício de sua missão pastoral.
No que tange à participação popular no Município, a atuação da Igreja se concentrou nas Comunidades Eclesiais de Base, que proliferaram por todo o Brasil, nas áreas urbanas e rurais, atingindo atualmente um número seguramente superior a 50.000.
Surgidas como uma nova experiência de participação dos leigos na vida da Igreja elas não se limitaram à atuação como grupos piedosos, mas assumiram real importância social e política.
É difícil identificar suas origens e é quase impossível conceitua-las. A expressão “comunidades de base” começou a aparecer em documentos do episcopado a partir da segunda metade dos anos 60. A sua espontaneidade e a sua informalidade impedem a identificação de seu surgimento, da mesma forma que a heterogeneidade e a fluidez dificultam ao máximo sua conceituação.
É certo, porém, que suas origens remontam ao Concílio Vaticano II, a partir do qual a Igreja se preocupou com uma ação evangelizadora mais ampla e mais intensa, alargando as possibilidades de participação dos leigos.
Diga-se, também, que nessa época, no Brasil, a Igreja enfrentava problemas decorrentes da crônica ausência de vocações sacerdotais, ao mesmo tempo em que outros credos religiosos estavam em crescente aceitação popular. Além disso, a Igreja estava traumatizada pela fragmentação política, na medida em que alguns setores do clero haviam apoiado o golpe militar, enquanto leigos, freiras, padres e bispos que a ele se haviam oposto sofriam toda sorte de punições.
Nesse momento estratégico, a Igreja católica se lançou decididamente no sentido apontado pelo Concílio e formulou claramente sua opção pelos pobres.
Essa orientação foi consagrada na reunião do episcopado latino-americano (CELAM) realizada em Medellin, em 1968, em cujas conclusões se consignou expressamente a defesa dos direitos dos pobres e oprimidos e se definiram as comunidades eclesiais de base como primeiro e fundamental núcleo eclesial, célula inicial da estruturação eclesial, foco de evangelização e fator primordial de promoção humana e desenvolvimento.
Conforme assina Paulo Sérgio Scarpa (“A Igreja e as bases”, Folhetim n. 167, 30.3.80, p. 14) os religiosos deixaram de ser apenas guias espirituais para, também, enfrentar junto com o povo as pressões exercidas pelo poder. São suas palavras: “Se, a princípio, no Brasil, o padre sem batina e vestindo um macacão de operário ou com uma enxada na mão foi acusado de “comunista” e de tentar subvertem a ordem, a simples troca de vestimenta quebrou, de certa forma, uma barreira que se fazia sentir e aprofundar entre o povo e a Igreja. Da teatralização diária de seus ritos e pronunciamentos, fruto de uma Idade Média quando a Igreja assumiu o papel de grande censora de todos os tempos, padres, religiosos e bispos, animados pela visão revolucionária e profética de João XXIII, e, dogmatizadas pelas resoluções do Concílio Vaticano II, deixaram de lado sacristias, rejeitaram o apoio das oligarquias, passaram a se preocupar muito mais com o bem-estar e a sobrevivência do povo brasileiro do que com as dimensões e riquezas materiais de uma nova Igreja”.
Surgidas como movimento religioso, destinado a propiciar uma participação maior dos leigos na vida da Igreja, as CEB extravasaram de longe esse objetivo.
Cada CEB agrega cerca de cinquenta indivíduos de ambo os sexos e de diversas faixas etárias que se reúnem em função do fator vizinhança. Normalmente a estruturação começa pela organização de pequenos grupos, estimulados por agentes de pastoral (padres, irmãs, líderes de outras comunidades), que discutem problemas de família, desentendimentos entre pais e filhos, educação dos filhos, falta de dinheiro e, especialmente, problemas comuns dos fiéis da paróquia, como lixo, água encanada, favelas, transportes coletivos, etc.
Com o decorrer do tempo vão se organizando as orações em comum, acompanhadas de leitura da Bíblia, reflexão sobre o seu conteúdo e aplicação atual da mensagem cristã. Em alguns casos o fortalecimento da fraternidade leva ao auxílio mútuo traduzido na troca de serviços, na manutenção de caixas comuns, etc.
“No mais das vezes, porém, a prática do auxílio mútuo se fortalece e se desdobra através de pequenos projetos de atividades comunais. A partir da reflexão sobre a situação política sobre a situação especifica do bairro e as carências mais prementes dos moradores, à luz do Evangelho lido e discutido, estes projetos são elaborados com a participação dos membros de uma ou de várias comunidades eclesiais existentes no local. Discutido, estudados, refletidos, procede-se à votação para determinar os primeiros projetos a serem executados. Via de regra, os projetos escolhidos pelo voto dos participantes obedecem tanto à prioridade das necessidades quanto à facilidade de execução: mutirão, creches, compras comunitárias, etc.”
A prática do voto é largamente exercitada, até mesmo porque a pessoa que vota já fica comprometida com a decisão, e assume responsabilidades pela execução do que foi decidido.
O que há de mais notável, porém, é que as carências mais agudas da periferia (saneamento, iluminação, segurança, calçamento, transportes, etc.) são sentidas como privações de toda a comunidade e como injustiças cometidas contra ele.
“Concretizam-se nestas circunstâncias os temas de reflexão sobre as Escrituras, condenando-se a desigual repartição dos recursos da cidade e suas consequências sobre a qualidade de vida dos habitantes desprivilegiados” (p. 75).
É neste instante que se passa claramente da participação religiosa para a participação política. Devidamente conscientizadas dos problemas e do seu direito a obter do Poder Público a solução é que as CEBs finalmente formulam suas reivindicações às autoridades.
Tais reivindicações possuem um traço característico: “Trata-se de uma exigência de justiça e não de um pedido de favor” (p. 75).
Não há barganha, porque nada há para se barganhar. O atendimento à reivindicação não é um favor, pois a comunidade a ele tinha direito.
Algumas CEBs mais avançadas chegam a alcançar que a reinvindicação de seus direitos é apenas um passo, que não afeta nem abala as estruturas sociais que determinam as carências percebidas. Numa reflexão mais profunda chega-se à percepção da necessidade da construção de uma sociedade mais igualitária e mais justa, liberta das injustiças inerentes ao capitalismo.
Isto foi traduzido na mensagem dos bispos reunidos na CELAM de Puebla, em 1979: “Ao analisar mais a fundo esta situação, descobrimos que esta pobreza não é uma etapa transitória; senão que é o produto de situações e estruturas econômicas, sociais e políticas, que originam esse estado de pobreza, ainda que haja também outras causas da miséria” (Seminário “O São Paulo”, n. 1.197, de 17 a 23.2.79).
Como se nota, a experiência das CEBs evidencia a mais sólida e formidável forma de participação popular, especialmente a nível do governo municipal.
“Aqueles setores eclesiásticos comprometidos com os pobres encontram na experiência das CEBs o lugar deste compromisso, que redunda no exercício e no aprendizado de práticas embrionárias de participação democrática. Essas práticas incluem a discussão em grupo, o treino da fala, o domínio de auditórios maiores (por ocasião dos encontros em nível arquidiocesano, por exemplo), o exercício da escrita, o manuseio de mimeógrafos e outros modestos veículos de comunicação, a prática reiterada do voto para toda e qualquer decisão” (p. 77).
VI – Perspectivas de evolução
Em seu estágio atual as Comunidades Eclesiais de Base já permitem uma participação popular muito mais consistente do que a que era propiciada pelas antigas Sociedades de Amigos de Bairros.
Cresce, porém, o conteúdo ideológico da atuação das CEBs na medida em que seus militantes, ao lutar pelo estabelecimento de novas relações sociais, repelem as que são ditadas pelo caráter competitivo do capitalismo.
Na maioria dos casos, em suas atuações as CEBs têm preferido se valer da auto-ajuda (que assegura a autonomia em face do Estado), só apelando para reivindicação ao Poder Público quando estritamente necessário. Mas já se percebe que isso leva a uma atividade substitutiva da Administração Pública. Por isso mesmo a auto-ajuda tem sido contestada, pois, em última análise, representa um sacrifício adicional para a comunidade, que acaba realizando trabalhos que competiriam à sociedade como um todo, representada pelo Estado.
Já se percebe a necessidade de participação popular nas instituições governamentais. Não basta ter consciência de seus direitos, como também não basta poder agir com independência perante o Estado. É preciso participar mais ativamente da execução das tarefas governamentais, controlando a destinação de recursos públicos, fiscalizando a atuação das concessionárias de serviços públicos, e gerindo escolas, creches e outros equipamentos urbanos obviamente destinados a servir a população.
Entretanto, para que isso possa ser alcançado é preciso passar do plano dos organismos informais para o plano das entidades formalmente constituídas e aptas para ocupar cargos e funções regulares inerentes ao sistema representativo.
A luta que vem sendo travada resume-se na maior participação.
“Esta maior participação, almejada no plano econômico e social, requer, no entanto, como condição prévia, maior participação no plano político porque é esse nível que as transformações de maior alcance têm que ser decididas” (p. 214).
Tal exigência tem colocado os movimentos de base num dilema diante dos partidos políticos: não ingressar nesse plano e correr o risco da impotência, ou ingressar na vida partidária e correr o risco da descaracterização.
Paul Singer, na obra por nós apontada (“São Paulo: o povo em movimento”, na qual este trabalho está inteiramente calcado) mostra o que para ele é a única solução: “Para que estes movimentos possam cumprir sua finalidade, eles terão que, mais cedo ou mais tarde, suscitar a formação de partidos, que tenham como programa e como prática tanto a preparação dos trabalhadores e grupos oprimidos para efetivamente participarem do poder quanto a destruição de todas as barreiras que se opõem a esta participação” (p. 223).
De nossa parte vislumbramos a coexistência entre os movimentos de participação popular e os partidos políticos. Dada a diversidade de propósitos e de fundamentos dessas associações, umas não englobam nem podem suprir as outras, sob pena de descaracterização.
A representação de interesses locais e setoriais não pode ser feita por meio de instrumentos aptos e talhados para a representação de interesses gerais, e vice-versa.
Como recentemente afirmou José Roberto Dromi em entrevista ao jornal “Clarim” (Buenos Aires, 27.4.81), é certo que os partidos políticos não são os únicos protagonistas políticos e que a participação democrática requer a existência de outras associações intermédias entre o indivíduo e o Estado.
Porém a tarefa da representação política é missão típica, própria e especifica dos partidos políticos que devem ser amparados e garantidos a nível constitucional.
Por outro lado, não há sistema político tão perfeito que possa tornar totalmente dispensável os movimentos de base, pela eliminação completa e total das carências de seus integrantes. Isto, pela própria natureza humana, é logicamente impossível.
VII – Conclusões
A participação é um direito natural. Cabe ao Estado garanti-la e propiciar meios para sua existência e atuação.
Assim como no passado o Estado reconheceu a existência e a importância do Município, é preciso, agora, reconhecer e garantir um espaço político aos movimentos de base, ao lado de outras associações intermédias entre o indivíduo e o Estado.
O Município oferece condições ideais para o incremento da participação dos cidadãos na vida pública. Essa participação não se resume na disputa de cargos eletivos de representação formal e nem na ação no âmbito interno dos partidos políticos.
A experiência demonstra que a participação popular espontânea e informal independe dos partidos políticos, pois tanto pode atuar ao lado deles quanto, excepcionalmente, em lugar deles (em momentos de crise institucional).
No âmbito municipal as entidades representativas de segmentos da população urbana ou rural são hoje uma necessidade decorrente do processo de urbanização e da complexidade social.
Não se destinam a substituir nem a administração municipal nem os órgãos legislativos municipais, mas são um requisito indispensável para que o Município recupere pelo menos parte das condições que justificaram a sua origem e desenvolvimento e que o caracterizaram, ao longo do tempo, como a instituição política mais sólida e mais democrática.
Sem participação não há democracia.
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