The Social Role of Property
The Social Role of Property
Abstract
1.1 IntroduçãoComo estão relacionados o Direito Administrativo e o princípio da função social da propriedade?
No passado, certamente houve quem julgasse que a propriedade seria questão própria e exclusiva do Direito Civil, mesmo porque uma das garantias individuais seria a da inviolabilidade do domínio, de modo que o Estado dele não cuidaria senão ao disciplinar relações privadas. A ideia não resistiu à evolução do Estado, que tratou de opor limites à propriedade para condicioná-la ao uso coletivo. O poder de polícia — hoje tão combatido, e com justa razão, como noção essencial ao Direito Administrativo — tornou-se então o instrumento de intervenção do Estado na propriedade.
Mas o intervencionismo cresceu, respondendo a uma multiplicidade de fatores e objetivos, e com ele a necessidade de novos instrumentos, aptos a enfrentar essa nova realidade. As Constituições passaram a abrigar capítulos sobre a ordem econômica e social, em que se fixam princípios norteadores do que deve ser a sociedade. Justiça social, valorização do trabalho, contenção do poder econômico: princípios dispostos a contrariar a própria natureza das relações econômicas ou, ao menos, o estágio atual delas. É compreensível que, adotado um modelo de combate ao autoritarismo privado, em que se deveria cercear e dirigir a ação de grupos econômicos privados, se prestigiasse novamente o Estado, única entidade em condições de enfrentar com vantagem o poder econômico.
Seria inevitável que uma tal tendência viesse a atingir a questão da propriedade, já que ela é o cerne do modelo capitalista. Se os movimentos sociais que influíram sobre as Constituições modernas pretendiam — como pretendem — construir uma ordem social
diferente, como consequência de uma nova ordenação econômica, certamente estavam visando à instituição da propriedade, posto que toda mudança substancial terá de atingi-la, conformando-a a novos objetivos.
Surge, assim, o princípio da função social da propriedade, representando um compromisso entre a ordem liberal e a ordem socializante, de maneira a incorporar à primeira certos ingredientes da segunda.
Seu reflexo há de se fazer sentir sobre toda ordenação econômica do país, já que feito princípio fundamental dela, e, assim, sobre as múltiplas propriedades conhecidas: a pública, a privada, a dos bens de consumo, a dos bens de produção, a agrícola, a industrial, a urbana, a rural, a das marcas de indústria e comércio, a literária, a artística, a científica. É evidente, contudo, que o reflexo será muito diverso em cada uma delas que, afinal, têm pouco de comum. Não existe, e isto é certo, uma única instituição da propriedade, mas várias e muito diferenciadas, seja por sua regulamentação, seja pela importância dos bens sobre os quais incidem, aspectos um e outro intimamente relacionados.
É certo também que a abrangência — sobretudo no universo legislativo — do reflexo do princípio da função social será determinada pelo estágio de exigência da própria sociedade (e este varia no tempo e no espaço), porque a fórmula consagrada na Constituição é suficientemente lata para admitir uma interpretação variada e construtiva.
Por isto não é leve a tarefa de quem se dispuser a tratar do conteúdo jurídico do princípio da função social da propriedade. Há muitas etapas, inclusive pré-jurídicas, a vencer: o estado atual do modelo econômico, a indefinição do papel estatal, a emergência contínua de novos conflitos sociais, tudo a tornar ainda pantanoso o terreno fático sobre o qual se constroem os modelos legislativos. A solidificação desse terreno fará nascer, então, múltiplos problemas de ordem científica, consistentes na adaptação de uma Ciência do Direito criada para descrever um mundo de normas que se alterou e se altera profundamente. Será inevitável o questionamento, de resto imemorial, sobre a dualidade Direito Privado-Direito Público. Será necessário repensar o Direito Administrativo, ao menos para compreender as novas formas de ação e intervenção do Estado.
Não obstante, é lícito e útil, em Ciência, especular. E já se tem material fértil para tanto: o chamado Direito Urbanístico progride rapidamente, ao influxo do crescimento das cidades e de seus problemas. Nesta área circunscrevemos nossa meditação.
1.2 O direito e a função social da propriedade
Parecem ideias contraditórias: a garantia de um direito individual de propriedade e o Estabelecimento de uma função social. A contradição, porém, não é jurídica, mas apenas histórica e ideológica.
De fato, a noção mais tradicional de propriedade é aquela que a concebe como um poder do indivíduo consubstanciado na liberdade de o proprietário, autonomamente, determinar a sorte do objeto submetido à sua vontade.
Léon Duguit em sua célebre obra Les Transformations du Droit Privé depuis le Code Napoleón, onde reuniu uma série de conferências realizadas na Argentina em 1911, dedicou um dos capítulos ao tema “La proprieté-fonction sociale” , criticando esta noção individualista e metafísica de propriedade e propugnando por uma propriedade-função social. Segundo ele, os Códigos baseados no princípio individualista e civilista fundavam sua ideia de propriedade em duas preocupações: a de legitimar a apropriação sem qualquer consideração sobre seu fundamento, e a de proteger a afetação da riqueza a uma finalidade meramente individual2. Daí por que o direito de propriedade tornou-se a expressão por excelência da autonomia da vontade humana, da soberania do indivíduo3.
Em consequência, tendo o proprietário o direito de usar, gozar e dispor da coisa, teria o direito de, ao inverso, não usar, não gozar, não dispor, deixando as terras sem cultivo, os terrenos urbanos sem construção, as casas sem locação. Afinal, o direito de propriedade era absoluto4.
Propriedade, liberdade e a concepção civilista de autonomia da vontade eram noções coerentes, talhadas para garantir um modelo econômico e uma consequente necessidade prática: a de proteger o indivíduo contra o excessivo poder do Estado, permitindo-lhe o desempenho, totalmente autônomo, de sua atividade. É preciso perceber que o conceito de propriedade não nasceu com esta conotação individualista, tanto que já existia antes dela. Foi, em verdade, adaptado a ela, seguindo uma tendência do Direito Privado da época.
Interessante que, quando a doutrina jurídica se preocupou em formular os princípios básicos da atividade estatal, regulada pelo Direito Administrativo, procurou ideias que se opusessem àquelas de propriedade, liberdade e autonomia da vontade. Ruy Cirne Lima, por exemplo, notável jurisconsulto, em páginas insuperáveis, depois de demonstrar ser a relação de administração “ a relação jurídica que se estrutura ao influxo de uma finalidade cogente” a ela opôs a noção de propriedade, nos seguintes termos: “Na Administração o dever e a finalidade são predominantes; no domínio, a vontade”5.
Celso Antônio Bandeira de Mello em precioso estudo sobre o ato administrativo, realizou cotejo entre as características do ato de Direito Civil e as do ato administrativo, arrolando como particularidades do primeiro a autonomia da vontade e a busca de interesses individuais, que se contrapõem ao dever, à função estatal, para atingimento de finalidades públicas, presentes no ato administrativo6. Assim sendo, o proprietário praticaria atos com base na autonomia que é reconhecida à sua vontade, para atingir interesses individuais. Já o Administrador Público praticaria atos no exercício de um dever (de uma função) para realizar interesses públicos definidos em lei.
O Direito Privado e, nele, a propriedade, foram construídos em torno de uma noção de liberdade altamente individualista, descomprometida com uma preocupação coletiva e social, que seria exclusiva do Estado. Por isto a dificuldade de os estudiosos encaixarem como um dos seus ramos o Direito do Trabalho que, apesar de regular as relações de pessoas privadas, abriga certa consciência coletiva.
Para substituir a concepção de propriedade como o poder exclusivo da vontade do titular sobre a coisa, em coerência com uma nova visão da liberdade, Duguit, em sua precitada obra, propôs a propriedade-função social, justificando-a: “Todo indivíduo tem a obrigação de cumprir na sociedade uma certa função, na razão direta do lugar que nela ocupa. Ora, o detentor da riqueza, pelo próprio fato de deter a riqueza, pode cumprir uma certa missão que só ele pode cumprir. Somente ele pode aumentar a riqueza geral, assegurar a satisfação de necessidades gerais, fazendo valer o capital que detém. Está, em consequência, socialmente obrigado a cumprir esta missão e só será socialmente protegido se cumpri-la e na medida em que o fizer. A propriedade não é mais o direito subjetivo do proprietário; é a função social do detentor da riqueza”7.
Função é conceito que se opõe ao de autonomia da vontade, tal qual concebido no Direito Civil. Santi Romano escreveu: “ As funções (officia, numera) são os poderes que se exercem não por interesse próprio, ou exclusivamente próprio, mas por interesse de outrem ou por um interesse objetivo. Deles se encontra exemplos mesmo no Direito Privado (o pátrio-poder, o ofício do executor testamentário, do tutor etc.), mas no Direito Público sua figura é predominante”8. No mesmo sentido, .Renato Alessi define a função estatal, como o poder enquanto dirigido a uma finalidade de interesse coletivo e cujo exercício constitui um dever jurídico9.
Como se vê, ao acolher o princípio da função social da propriedade, o Constituinte pretendeu imprimir-lhe uma certa significação pública, vale dizer, pretendeu trazer ao Direito Privado algo até então tido por exclusivo do Direito Público: o condicionamento do poder a uma finalidade, Não se trata de extinguir a propriedade privada, mas de vinculá-la a interesses outros que não os exclusivos do proprietário. Assim como a imposição de deveres inderrogáveis ao empregador, no interesse do empregado, não faz dele um ente público, também a função social não desnatura o proprietário nem a propriedade: apenas lhe impõe cerceamentos diferenciados.
Importa notar que, como consequência da submissão da propriedade, ou do proprietário, a objetivos sociais — evidentemente obrigatórios — criam-se verdadeiros deveres.
Trata-se de alteração radical na compreensão da propriedade, que sempre foi tida como mero poder, como direito subjetivo. Entretanto, a afirmação de que são inconciliáveis, as ideias de direito subjetivo e função, é meramente ideológica. Eros Grau bem demonstrou sua improcedência: “Ser titular de um direito subjetivo é estar autorizado pelo ordenamento jurídico a praticar ou não praticar um ato — isto é, a transformar em ato a potência, ou seja, a aptidão para a prática de tal ato. A transformação da faculdade em ato, quando juridicamente autorizada — e aí o direito subjetivo — deve ser exercida dentro dos limites da autorização. Daí parecer-me equívoca a afirmação de tal contradição dogmática. Pode o Direito, coerentemente, introduzir como elementos integrantes da autorização, a alguém para o exercício de uma faculdade, inúmeros requisitos, inclusive criando obrigações e ônus para o titular do direito subjetivo”10.
Ora, se estiver legitimado a apropriar-se de algo, há o indivíduo, obrigatoriamente, de cumprir os interesses sociais que possibilitaram tal legitimação. Para cumpri-los, deve assumir um papel ativo, colocando em atividade a riqueza de que é detentor, em benefício da coletividade.
Assim sendo, pode e deve o ordenamento jurídico impor ao proprietário obrigações de fazer11 consistentes na própria utilização da coisa em prol da sociedade.
Já se pode perceber, a esta altura, que a propriedade-função implica a superação do dualismo clássico Direito Privado-Direito Público, posto que:
a) à relação jurídica de propriedade imprime-se uma finalidade pública e, portanto, cogente;
b) a ideia de autonomia da vontade na utilização da coisa é substituída pela de função.
1.3 Função social e limitações administrativas
Cabe explicitar aqui algo que está subjacente às conclusões obtidas, mas que não se tem devidamente percebido na doutrina: o princípio da função social, não é o fundamento das clássicas limitações administrativas à propriedade (Poder de Polícia)12.
Autores da maior suposição têm, mesmo inconscientemente, incorrido no equívoco13. Contudo, há vários argumentos, todos ponderáveis, contra esta visão.
Não só a propriedade, como também a liberdade, pode ser condicionada pela atividade da Administração Pública à qual comumentese denomina Polícia Administrativa. Não há, na Constituição, nenhuma previsão específica a respeito de uma função social da liberdade e nem por isto se entende que o Estado não possa limitá-la. A razão é simples: o fundamento das limitações administrativas sempre foi encontrado na supremacia geral do Poder Público frente aos cidadãos, sem necessidade de disposição constitucional específica. Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que “o Poder de Polícia descansa na supremacia geral da Administração Pública; isto é, na condição que esta desfruta, em relação aos administrados, indistintamente, de superioridade, pelo fato de satisfazer, como expressão de um dos poderes do Estado, interesses públicos”14. Clóvis Beznos, por sua vez, afirmando ser a Polícia Administrativa um “ elemento entrópico negativo” do sistema jurídico, aponta o próprio art. 153, § 2°, da Carta Magna (“Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”), como seu fundamento15.
Ora, se nunca se impugnou o poder de o Estado limitar a propriedade, adequando-a ao interesse público, mesmo quando esta era tida apenas por direito individual absoluto, por que achar agora que as limitações baseiam-se no princípio da função social?
A preocupação não é acadêmica, como poderia parecer, ante a constatação de que, seja qual for seu fundamento, são admissíveis em nosso mundo jurídico as limitações administrativas à propriedade.
Ocorre que, tomada a função social neste sentido equivocado, impedida está a apreensão do verdadeiro conteúdo do princípio, demaneira que este permanece incompreendido e, sobretudo, inaplicado.
Tal fato tem, como muita coisa em relação à propriedade, um condicionante poderoso. É que, assimilada e dissimulada a noção de função social no antigo conceito de limitação administrativa, é dizer, de Poder de Polícia, nada se altera no regime jurídico da propriedade. Eros Grau, com felicidade, discorreu a respeito: “ Não há grandes dificuldades para a compreensão do conúbio poder e dever — isto é, entre direito e função — enquanto concebemos a função social como princípio gerador da imposição de limites negativos ao comportamento do proprietário. Isto porque gravitamos, então, no interior
de um universo de limitações análogas às manifestações de poder de polícia, coerentes com a ideologia do Estado Liberal. Até então, como expressão da imposição de restrições no exercício da propriedade, a função social, nas suas manifestações exteriores, não é senão mera projeção do poder de polícia. Este é coerente e inteiramente adequado à ideologia do Estado Liberal”16.
Pense-se em uma hipótese extrema; imaginemos que uma emenda constitucional suprimisse o n. III do art. 160 da Carta Magna. Por acaso se sustentaria, nesta hipótese, que o direito de propriedade, ou seu exercício, ter-se-ia tornado ilimitável? Por acaso se diria que o Município estaria impedido de estabelecer um zoneamento? Ouvir-se-ia a afirmação de que o Estado haveria de ficar inerte ante a poluição industrial? Obviamente não!
Ora, a Carta Constitucional outorga às pessoas políticas competências cujo exercício implica ingerências várias sobre a propriedade, para compatibilizá-la com a vida social. Em nome da defesa e proteção da saúde, União e Estados criam limitações (CF (LGL\1988\3), art. 8°, XVII, “c” e parágrafo único). Em razão de seu peculiar interesse (CF (LGL\1988\3), art. 15, II), o Município impõe limitações.
Além disso, ao legislar sobre Direito Civil e, em consequência, sobre a propriedade (art. 8.°, X V II, “ b ”), a União nada mais faz que restringir ou condicionar a propriedade, cujo conceito é metajurídico.
Alguma dificuldade poderia surgir, ainda na eventualidade de uma emenda suprimir o princípio da função social. A questão seria a de saber se a propriedade, mesmo assim, poderia ser limitada ou condicionada em nome do desenvolvimento e da justiça social, previstos no caput do art. 160.
A resposta seria, sem qualquer sombra de dúvida, positiva. Em nossa ordem econômica, a propriedade é componente fundamental, razão por que seu regime jurídico deve permitir a realização dos objetivos arrolados no Título III da Constituição. Ao definir o direito de propriedade, o legislador federal deveria estar atento à implementação do desenvolvimento e da justiça. O Município, também, em nome do desenvolvimento urbano, poderia impedir este ou aquele uso, se fossem inconviventes com aquele.
Em suma, se o Constituinte não tivesse criado uma função social, fabricando uma noção nova, isto não impediria que, sempredentro da antiga concepção de direito de propriedade, se procurasseatingir os objetivos da Ordem Econômica e Social. O problema seria outro: o da eficácia dos meios à mão do legislador, Portanto, só se pode concluir que o princípio da função social é um (novo instrumento que, conjugado aos normalmente admitidos (as limitações, as desapropriações, as servidões etc.), possibilitam a obtenção de uma ordem econômica e social que realize o desenvolvimento com justiça social.
Portanto, daqui para a frente, quando quiserem relacionar as múltiplas ingerências possíveis na propriedade, os doutrinadores deverão incluir, a par das já conhecidas, aquelas fundadas no princípio da função social, explicando que todas as ingerências, por exigência constitucional, têm por objetivo, de uma forma ou de outra, o desenvolvimento e a justiça. Nem todas, contudo, têm fundamento na referida função social.
Cumpre aduzir, ao cabo deste tópico, um a palavra sobre o problema das limitações impostas em decorrência do exercício do chamado Poder de Polícia e o tipo de obrigações que delas resultam aos particulares.
Doutores de muitas luzes têm defendido a ideia de que o Poder de Polícia tem um sentido negativo. Celso Antônio Bandeira de Mello, por exemplo, afirma que ele “ é negativo no sentido de que através dele o Poder Público não pretende uma atuação do particular, pretende uma abstenção. Por meio dele não exige nunca um facere, mas um non facere”17. Clóvis Beznos18 e Celso Bastos19 acompanharam- no nessa posição.
Não concordamos com tal colocação, seguindo, aliás a brilhante Prof.a Lúcia Valle Figueiredo20, que critica, ademais e com razão, a própria noção de Polícia, que se confunde com a própria função administrativa. O que caracteriza a Polícia Administrativa, como entendida tradicionalmente, é a atividade de limitar e condicionar a liberdade e a propriedade, para adequá-las aos objetivos públicos.
Tanto é possível limitar uma propriedade impedindo a construção de mais de 10 andares (obrigação de não fazer), como condicionando o exercício do direito de construir à instalação de aparelhos contra incêndio (obrigação de fazer). A limitação, em outras palavras, tanto pode traduzir uma proibição como uma exigência de obrigação de fazer.
O que nos parece exato é que o fazer característico das limitações não é o objetivo da Administração. Esta não quer o próprio ato praticado. Embora taxando-as de aparentes obrigações de fazer — com o que não concordamos — Celso Antônio Bandeira de Mello bem expôs essa questão, verbis: “ Às vezes, no Poder de Polícia, há aparentemente obrigação de fazer. Por exemplo: exibir planta para licenciamento de construção; fazer exame de habilitação para motorista; colocar equipamento contra incêndio nos prédios. É mera aparência de obrigação de fazer. O Poder Público não quer estes atos. Quer, sim, evitar que as atividades ou situações pretendidas pelosparticulares sejam efetuadas de maneira perigosa ou nociva, o que ocorreria, se realizadas fora destas condições”21.
Parece-nos que as hipóteses tratam de obrigações de fazer, isto é, de atos positivos, não de uma abstenção de ação. Entretanto, o que as caracteriza é que q fazer é mera condição cujo implemento abre a oportunidade do exercício de um direito. Assim, para servir refeições, o comerciante deve tabela de preços na porta do estabelecimento; para sair à rua com seu veículo, o motorista deve usar o cinto de segurança; para vender iogurte, o industrial deve imprimir seu prazo de validade na embalagem.
O que o Poder Público quer é que o direito só seja exercido após o implemento da condição. Daí por que o fazer é limitação ao exercício do direito.
Sempre se aceitou normalmente a imposição de obrigação de lazer ao proprietário, como condição para o exercício do direito de propriedade. São exemplos: a obrigação de construir muro, de limpar o terreno, aprovar planta, de instalar extintor de incêndio.
Do que nunca se cogitou, porque incompatível com a propriedade individualista, foi da imposição da obrigação de utilizar o imóvel,isto é, obrigação de exercer o direito em benefício de um interesse social. E é justamente tal tipo de obrigação que se deve imporcom fundamento na função social.
Percebe-se que o fazer, nas duas hipóteses, tem um caráter distinto. No primeiro caso, o das limitações, trata-se de condição para o exercício de direita No segundo (função social), trata-se do deverde exercitar o mesmo direito.
Não fosse estreito o objetivo deste trabalho, enquadraria aqui questionar da utilidade do conceito de Poder de Polícia, aduzindo às críticas que já lhe foram feitas por autores importantes, mais uma: não seria noção por demais estrita, gerando a falsa impressão de que a ingerência ordinária da Administração na propriedade só seria possível se visasse a condicionar seu exercício, não, porém, se pretendesse obrigar ao próprio exercício dos poderes do domínio? A função social parece ser mais um indicativo da inadequação da teoria do Poder de Polícia para sistematizar a atividade estatal moderna.
1.4 Aspectos do regime jurídico da propriedade-função
A par de assegurar a propriedade como direito individual, erigindo uma paliçada intransponível pelo Estado, salvo o caso de desapropriação (art. 153, § 22), a Constituição nacional, ao tratar da Ordem Econômica e Social, dispõe, em seu art. 160:
“ Art. 160. A ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base nos seguintes princípios:
“I — liberdade de iniciativa;
“II — valorização do trabalho como condição da dignidade humana;
“III — função social da propriedade;
“IV — harmonia e solidariedade entre as categorias sociais de produção;
“V — repressão ao abuso do poder econômico, caracterizado pelo domínio dos mercados, a eliminação da concorrência e o aumento arbitrário dos lucros; e
“VI — expansão das oportunidades de emprego produtivo.”
O dispositivo em estudo tem profundas implicações no regime que, obedecida a garantia contida no art. 153, § 22, o legislador deve criar para a propriedade. Isto não só porque há disposição expressa sobre uma função que a propriedade deve realizar, mas porque o objeto de normação constitucional é, nesse passo, a ordem econômica. E é sabido que a instituição da propriedade responde, sobretudo, a uma necessidade econômica. Trata-se de instrumento básico d a [ordenação econômica capitalista, pois é, em parte, baseado nela, que os particulares participam na produção de desenvolvimento.
Ao estabelecer que espécie de ordenação econômica a sociedade brasileira deve implementar, o Constituinte está, em consequência, definindo qual o valor a ser realizado pela propriedade. Não é só, contudo. Prevendo expressamente uma função social, a Lei Magna traçou ao proprietário22 um papel específico no caminho necessário à concretização do valor eleito.
O caput do art. 160 estabelece que a ordem econômica e social tem por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social.
São, portanto, o desenvolvimento e a justiça social os objetivos a serem alcançados. “Registre-se que, embora o artigo fale em desenvolvimento nacional e justiça social, não privilegiou o primeiro (desenvolvimento), em relação à segunda, pelo fato de havê-lo mencionado antes. Pelo contrário, a conclusão deverá ser outra, já que os princípios arrolados privilegiam a justiça social. Vale dizer: a Carta impõe desenvolvimento que se faça com atenção àqueles ditames de justiça. Este é o modelo de desenvolvimento proposto na Lei Máxima. E imposto.”23
A propriedade, como elemento fundamental da ordem econômica, há de servir à conquista de um desenvolvimento que realize a justiça social. Consequentemente, o regime jurídico que lhe for traçado deve ensejar o desenvolvimento e favorecer um modelo social que seja o da justa distribuição da riqueza.
O regime jurídico da propriedade há de ser tecido pelo legislador, que é o destinatário básico das disposições constitucionais em comento, como uma síntese da função individual e da função social, previstas sucessivamente nos arts. 153, § 22, e 160, III, da Constituição. A nosso ver, tal síntese bem poderia ser traduzida pelas
seguintes ideias:
a) o princípio da função social não autoriza a supressão da propriedade privada;
b) a utilização da propriedade na realização de interesses sociais merece proteção do Direito, mesmo contra o proprietário;
c) o princípio da função social é fundamento para a imposição do dever de utilizar a propriedade;
d) a função social é um dos fundamentos de legitimação da propriedade.
1.4.1 O princípio da função social não autoriza a suprimir a propriedade privadaA função, já o demonstramos, não significa a extinção do direito subjetiva. Em matéria de propriedade, há a convivência necessária de ambos. Daí não haver fundamento lógico para sustentar-se que a propriedade privada extinguiu-se.
Ao contrário, por força da própria vontade constitucional, esta deve prosseguir existindo, gozando, ademais, de preferência em relação à propriedade pública (CF (LGL\1988\3), arts. 160, I, e 170).
Em suma, fica vedada ao Estado a supressão da propriedade privada por via legislativa, conforme salientado por José Afonso da Silva24.
O princípio da função social também não justifica a violação do direito de propriedade titularizado, em concreto, por um particular25. Por isto não se pode, sem desapropriação, esvaziar a propriedade de seu conteúdo, essencial mínimo.
Aliás, convém abrir uma explicação sobre o sentido da propriedade-função.
Não se trata de uma carta branca em favor do Estado, para que invista contra os particulares, em nome da realização de desenvolvimento com justiça. Antes, ao contrário, a finalidade mais profunda da alteração na concepção tradicional da propriedade é justamente preservá-la.
É sabido que, por força da evolução dos problemas sociais, o Estado tem alargado, quase ao infinito, a abrangência de sua ação. Em parte porque, se outrora foi necessário proteger-se o indivíduo contra o Estado, hoje isso não basta: é preciso defender os indivíduos contra o poder econômico dos próprios particulares, para atingir- se um estágio de igualdade substancial, e não apenas formal.
Não se pode, porém, nessa nova cruzada, permitir que o Poder Público acabe por sufocar os indivíduos, retirando todos os poderes que lhes foram outorgados pelas Constituições liberais.
A solução encontrada foi a de atribuir aos particulares uma função quase pública o que lhes aumenta os ônus, mas lhes preserva a liberdade. Realizando o proprietário um papel algo próximo daquele desempenhado pelo Estado, garante que este não tenha de assumir uma função que, de outro modo, terminaria em suas mãos.
Juridicamente, devemos observar, na esteira de Duguit26, que a propriedade individual continua protegida, inclusive contra o Poder Público, só que o direito positivo passa a proteger a liberdade de o detentor da riqueza preencher a função social que lhe incumbe.
Se é verdade que a propriedade individual não pode ser extinta sem mais, quer abstrata, quer concretamente, importa saber qual é o conteúdo mínimo da atual ideia de propriedade.
A instituição da propriedade responde à necessidade econômica de afetar determinados bens à realização de fins individuais ou sociais.
Para que haja tal afetação de modo eficiente, as pessoas hão de estar autorizadas a apropriarem-se dos bens, utilizando-os de acordo com as finalidades pretendidas, autorizadas ou impostas.
No modelo econômico baseado na propriedade, a apropriação, para consequente utilização do bem, é fundamental. Esse modelo pressupõe não só a possibilidade de os homens desfrutarem das coisas que lhe são oferecidas, como também desfrutá-las de uma específica forma: com exclusividade.
Necessário que outros não possam, concomitantemente, tom ar do bem, destinando-o a diferente finalidade, o que viria elidir o emprego que o sujeito anterior pretendera.
O bem haverá, em consequência, de estar submetido, com exclusividade,
ao sujeito.
A relação de propriedade tem o condão de afastar terceiros da mesma relação, à qual só poderão ser admitidos por vontade do titular.
Assim sendo, analisado o direito de propriedade como garantia constitucional do indivíduo contra o Estado, e contra os demais indivíduos, é do conteúdo do direito a idéia de exclusividade, Tem ele o direito de possuir algo com a exclusão de terceiros.
Nessa conformidade, lei municipal que autorizasse transeuntes a trafegar por um terreno particular, lei federal que facultasse ao vizinho realizar suas plantações no imóvel lindeiro, implicariam agravo ao direito, à medida que, afastando a exclusividade, tornariam sem objeto a apropriação.
Justamente por elidirem, mesmo que restritamente, a exclusividade, é que as servidões configuram diminuição da esfera jurídica do proprietário27, razão por que, em sendo públicas, submetem-se a processo expropriatório, com prévia e justa indenização (CF (LGL\1988\3), art. 153, § 22) e, em sendo particulares, ao processo judicial de instituição de servidão (CC (LGL\2002\400), arts. 559 a 562), que também reclama ressarcimento.
Corolário do poder de apropriar-se de uma coisa, e consequência dele, é a possibilidade de reivindicá-lo de terceiro, que injustamente o detenha. Fosse impossível retomar o bem, nula seria a garantia à exclusividade.
Em sentido amplo, utilizar um bem é destiná-lo a uma finalidade. A utilização compreende os poderes de dispor da coisa, usá-la ou dela gozar. Dispor de um bem do qual se é proprietário significa aliená-lo, consumi-lo ou gravá-lo de ônus, como a hipoteca, o usufruto. Usar é retirar as utilidades que, sem oneração, alienação, destruição ou alteração na substância, a coisa pode oferecer. Usa-se um imóvel para moradia, para instalação de negócio industrial ou comercial etc. Finalmente, gozar é perceber os rendimentos que o bem pode proporcionar, como o aluguel.
De logo se percebe que a apropriação de algo visa à sua utilização, vale dizer, sua afetação a uma finalidade. Inútil a detença de algo que, sob nenhuma forma, se pode utilizar.
Impossibilitada a utilização, a propriedade estará esvaziada de seu conteúdo lógico.
Por esse motivo, na regulamentação do direito constitucionalmente assegurado, o legislador tem como limite a garantia da utilização do bem. Poderá diminuir. restringir, dificultar esta possibilidade. Não poderá, entretanto, impedi-la, ou reduzi-la à insignificância.
Resta saber, então, quando estará impossibilitada a utilização.
Celso Antônio Bandeira de Mello aponta a ideia da funcionalidadeda utilização: o direito estaria sacrificado quando não se pudesse dar ao bem uma utilização funcional, entendendo-se por “funcionalidade a aptidão natural do bem em conjugação com a destinação social que cumpre, segundo o contexto em que esteja inserido. É isto que o Direito quer proteger quando consagra, constitucionalmente, o direito de propriedade”28.
Em outras palavras, qualquer restrição tem como limite a viabilidade prática e econômica da utilização: proibida esta, atingido estará o direito. Assim, a proibição de construir em terreno urbano, por impedir o uso viável, ofende a garantia constitucional. Uma lei que proibisse os locadores de receberem aluguel pela cessão do bem a terceiros, ou que o fixasse em valor insignificante, implicaria cassação da faculdade do gozo. Norma que impedisse, por cinco anos, a alienação de apartamentos residenciais, poderia ou não gerar agravo ao direito de propriedade, conforme fosse a destinação social do bem. Uma empresa construtora que, ao término de uma edificação, fosse apanhada por tal disposição ver-se-ia impedida de dar uma utilização funcional à coisa, posto que, para ela, utilizar significa exatamente dispor. Não obstante, o proprietário que residisse no apartamento, em tese, nenhum reclamo poderia opor, já que, em seu caso, o emprego normal do bem não estaria impedido.
1.4.2 A utilização da propriedade na realização de interesses sociais merece proteção do Direito, mesmo contra o proprietárioSe uma coisa vem cumprindo a função social a que se destina — no Direito Urbanístico, basicamente a habitação, o trabalho, a recreação — segue-se que o direito deve proteger tal situação, estabilizando-a.
Se um locatário, por exemplo, durante longos anos, utiliza um imóvel para exploração do comércio, enfim, para a realização de um trabalho, que gera riquezas, produz empregos e serve à cidade, torna-se imperiosa a manutenção da locação. É possível que o proprietário não pretenda a continuidade da relação, por motivos pessoais, mas a ordem jurídica tem de proteger, sobretudo, a função social do bem. Por isso, o emprego da coisa na realização de interesses sociais há de ser garantido, protegido, mesmo contra o próprio proprietário29.
A ideia não é recente. A renovação compulsória de locações comerciais, por exemplo, está prevista há mais de 50 anos, pelo Dec. 24.150, de 20.04.34 . Porém, se esta proteção era aconselhável (e aceitável) sob os regimes constitucionais anteriores, passou a ser imposta pela Carta vigente, razão por que tornou-se obrigatória e, portanto,exigível.
Várias são as espécies de garantias que o direito objetivo vem ofertando, ou pode (e deve) ofertar, àquele que realiza a função social. Citem-se como exemplos:
1. A renovação compulsória da locação de imóveis comerciais prevista no Dec. 24.150/34 (LGL\1934\6).
2 . A prorrogação dos contratos de locação residenciais por prazo indeterminado, impedindo sua rescisão pelo locador, salvo nas hipóteses em que se possa presumir que outra (ou melhor) destinação, socialmente útil, seja dada ao imóvel (Lei 6.649/79 (LGL\1979\285), art. 52).
3. O direito de preferência à aquisição do imóvel ao inquilino, para que este prossiga na sua utilização (Lei 6.649/79 (LGL\1979\285), art. 24).
4 . A contenção, pela lei, dos aumentos de aluguéis, permitindo aos locatários a permanência na locação, desde que assegurado rendimento razoável ao proprietário.
1.4.3 O princípio da função social é fundamento para a imposição do dever de utilizar a propriedadeJá se disse, no transcorrer deste estudo, que a realização legislativa do princípio da função social pode se dar pela imposição de obrigações de fazer, consistentes no próprio exercício do direito, no caso, utilização da propriedade.
Em consequência, pode o Estado insurgir-se contra um proprietário de terreno urbano que se negue a usá-lo, seja para edificação, seja para atividade econômica compatível com contexto urbano em que esteja inserido.
Múltiplos são os meios dos quais pode se valer o Poder Público nesse intento. Em coerência com a exposição feita, segundo a qual utilizar um imóvel significa usar, gozar ou dispor, elencamos, a título de exemplo, os seguintes instrumentos:
1. Obrigação de o loteador levar adiante o loteamento já registrado, mesmo contra sua vontade. Está prevista no art. 23, § 1.°, da Lei 6.766/79 (LGL\1979\27), que permite à Prefeitura ou ao Estado, opor-se ao cancelamento de registro de loteamento “se disto resultar inconveniente comprovado para o desenvolvimento urbano” .
2 . Parcelamento, edificação ou utilização compulsórios. Foram cogitados no art. 29 do Projeto de Lei 775/83 (Lei de Desenvolvimento Urbano), nos seguintes termos: “Art. 29. Lei Municipal, baseada plano de uso do solo, para assegurar o aproveitamento do equipamento urbano existente, poderá determinar o parcelamento, a edificação ou utilização compulsórios de terreno vago, fixando as áreas, condições e prazos para sua execução”30.
3 . Alienação compulsória a ser imposta aos proprietári
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