O direito de crítica e o mandato político

The right of criticism and the political mandate

Autores

DOI:

https://doi.org/10.48143/RDAI.16.vsnj

Resumo

O direito de liberdade[1] à informação jornalística foi objeto de proteção específica pela nossa Constituição, que, no parágrafo lº, do artigo 220, vedou expressamente qualquer atividade que possa constituir obstáculo ou embaraço ao fluxo informativo. Nesse sentido, o mens constitutionem é clara e incontroversa ao estipular vedação, quer ao Poder Executivo, quer ao Legislativo, para edição de atos ou desempenho de atividades que obstaculizem ou, de alguma forma, embaracem a livre informação jornalística.    Na verdade, a informação jornalística foi alçada a um patamar singular de proteção por razões bastante palpáveis. É que a informação jornalística constitui veículo da opinião pública livre. Esta, de sua vez, garantia institucional da democracia e do pluralismo político, indicados, pelo artigo 1º, caput e inciso V, da Constituição Federal, como, respectivamente, essência e fundamento da República Brasileira. O direito de informação jornalística, tal qual os demais direitos fundamentais, não é absoluto. Antes, é limitável, encontrando na existência e na observância dos demais direitos constitucionais as fronteiras demarcatórias da sua extensão.

Em diversas situações, o exercício de um direito fundamental pode implicar a ofensa de outro, ou outros direitos, de igual ou diferente natureza. Essas hipóteses, concretizadas amiúde na fenomenilização dos preceitos constitucionais fundamentais, albergam diferentes soluções. Muitas vezes, por exemplo, a própria Constituição se preocupa com a compatibilização dos dois ou mais institutos envolvidos. Por um lado, por exemplo, prescreve o direito fundamental à propriedade privada. De outro, institucionaliza a desapropriação. Contudo, compatibiliza a aparente assincronia, disciplinando a prévia e justa indenização. Em outras ocasiões, o constituinte outorga ao legislador ordinário a faculdade de integrar em eficácia institutos constitucionais, ou ainda faculta a edição de diploma de eficácia de suas normas. São as chamadas normas constitucionais de eficácia restrita e de eficácia contida, obedecendo-se classificação preconizada pelo Professor José Afonso da Silva.[2] Nessas situações não se colidem com os direitos, vez que o advento da legislação ordinária foi previsto e preconizado pela própria Constituição, “mas só tem cabimento na extensão requerida pelo bem-estar social. Fora daí é arbítrio,[3] conforme advertência do precitado jurista.

Todas essas situações, no entanto, trazem como nota de similitude a existência de regras, dentro do sistema, de equacionamento desses supostos conflitos. De conseguinte, a questão a merecer maior detença é exatamente aquela em que os direitos colidentes permanecem ao desabrigo de anterior previsão constitucional regulamentar, é dizer, quando o conflito normativo, no qual se enlastram diferentes direitos constitucionais, não advém da abstração regulamentar da norma, mas surge no exercício convergente de dois direitos que, em certa medida, passam a se antagonizar.

Tal situação bem se expressa no contraponto entre o exercício do direito à livre expressão do pensamento e o direito à honra ou à intimidade, onde certamente teremos circunstâncias de inconciliabilidade entre o exercício absoluto e ilimitado dos direitos colocados em concreta oposição. São as chamadas “colisões”[4] de direitos fundamentais, onde esses direitos, igualmente protegidos pelo texto constitucional, entram em conflito, visto que o concreto exercício de um direito fundamental implica a invasão da esfera de proteção de outro direito fundamental. Daí se poder afirmar que os direitos fundamentais não são absolutos ou ilimitados.

Com pena de mestre, José Carlos Andrade Vieira[5] versa o tema:    “Não o são na sua dimensão subjetiva, pois que os preceitos constitucionais não remetem para o arbítrio do titular a determinação do âmbito e do grau de satisfação do respectivo interesse”.   Seguindo nessa trilha, resta analisar a problemática da determinação de um critério de compatibilização entre os direitos antagonizantes. Inexiste regra geral a ser observada em todas as situações de conflito, mesmo porque tais colisões não se situam no plano normativo, vale dizer, dentro do raio regulamentar de cada uma das normas, mas, contrariamente, surgem no concreto exercício dos direitos. Ninguém nega validade à norma protetiva da liberdade de imprensa. O mesmo se diga em relação à norma que protege a intimidade. No mundo fenomênico, porém, vezes a fio existirão circunstâncias em que o exercício da liberdade de imprensa implicará possível desrespeito à intimidade, sem que com isso se anule quaisquer das regras em análise, pressupondo-se, contudo, a compatibilização prática de ambas. Acompanhando o precitado mestre português[6], para que se equacione concretamente a questão “exige-se que o sacrifício de cada um dos valores constitucionais seja necessário e adequado à salvaguarda dos outros”. Tal entendimento, aliás, afina-se inteiramente à lição de Canotilho e Vital Moreira, que ensinam: “No fundo, a problemática da restrição dos direitos fundamentais supõe sempre um conflito positivo de normas constitucionais, a saber entre uma norma consagradora de certo direito fundamental e outra norma consagradora de outro direito ou de diferente interesse constitucional. A regra de solução do conflito é da máxima observância dos direitos fundamentais envolvidos e da sua mínima restrição compatível com a salvaguarda adequada de outro direito fundamental ou outro interesse constitucional em causa. Por conseguinte, a restrição de direitos fundamentais implica necessariamente uma relação de conciliação com outros direitos ou interesses constitucionais e exige necessariamente uma tarefa de ponderação ou de concordância prática dos direitos ou interesses em conflito. Não se pode falar em restrição de um determinado direito fundamental em abstrato, fora da sua relação com um concreto direito fundamental ou interesse fundamental diverso”.[7]  

Segue-se dupla conclusão, a primeira que os direitos fundamentais, não sendo absolutos, são limitáveis, a segunda que essa Iimitabilidade não está plasmada em qualquer regra constitucional de contenção, mas sim aportada no efetivo exercício de direitos colidentes, hipótese em que, no caso concreto, se promoverá a conciliação dos direitos e interesses constitucionais envolvidos a partir da premissa de máxima observância e mínima restrição dos direitos fundamentais relacionados. O raciocínio tem aplicação cabal para a definição do regime jurídico do direito de informação jornalística, o qual, dentre outros, encontra nos direitos da personalidade, em especial a intimidade e a privacidade, limites claros ao seu exercício. Tratamento jurídico singular, no entanto, parece receber o direito de crítica em relação à atividade dos mandatários políticos. Com efeito, o direito de informação jornalística deriva da reunião de dois institutos: a notícia e a crítica. Aquela pode ser singelamente definida pela veiculação de fato cujo conhecimento seja importante para que o indivíduo participe da vida em sociedade. A crítica pode ser conceituada como juízo de valor aportado sobre a notícia.

Desde logo, observamos que o presente raciocínio tem aplicação específica: as relações derivadas do exercício do mandato e não a vida íntima ou privada do mandatário. No âmago das relações políticas, o direito de crítica adquire um colorido singular. Razões de duas ordens pelejam para o acerto dessa afirmação. A primeira consistente na exposição pública do mandatário, o qual, no terreno das relações políticas, se vê contingenciado a trazer ao conhecimento do público seus predicados de legislador, de administrador, de líder, enfim, de gestor da coisa pública em determinada polis. Por evidente que nessas condições, em que o indivíduo, por espontâneo ato de vontade, traz a público diversas afirmações quanto aos seus predicados e qualidades, não pode reclamar quanto a eventuais dúvidas ou questionamentos quanto aos mesmos.

Essa, aliás, a advertência de Thomas Cooley: “Quando alguém se apresenta candidato a um cargo público, põe voluntariamente em evidência as suas aptidões para o cargo, e todos quantos duvidam d’ellas têm o direito de fazer sentir ao povo as suas dúvidas, e exporem-lhe livremente as razões”.[8] Com efeito, ao concretizar uma postulação política, seus predicados podem e devem ser dissecados por seus eleitores. Em síntese, a pessoa que se oferece ao julgamento de seus concidadãos, com o fito de vir a gerir o patrimônio e as coisas públicas, se coloca em uma situação de manifesta evidência e não pode reclamar o mesmo nível de privacidade de um cidadão comum, pois que é ingênuo à política a exposição ao público, que, desta feita, tem o direito a informações que sejam necessárias para a formação de um juízo quanto à vida pública do mandatário.

Afinado a esse mesmo diapasão, o Tribunal Constitucional Espanhol, na sentença de 8 de junho de 1998, assim se manifestou: “...cuando las libertades se ejerciten en conexión con asuntos que son de interés general por las materias a que se refiere y por las personas que en ellos intervienen y contribuyen, en consecuencia, a la formación de la opinión pública, alcanzando entonces su máximo nivel de eficacia justificadora frente al derecho al honor, el cual se debilita proporcionalmente como limite externo de las libertades de expresión e información, en cuanto sus titulares son personas públicas o resultan implicadas en asuntos de relevancia pública, obligadas por ello a suportar un cierto riesgo de que sus derechos subjetivos de la personalidad resulten afectados por opiniones e informaciones de interés general, pues así lo requiere el pluralismo político, la tolerancia y el espíritu de apertura, sin los cuales no existe sociedad democrática”.[9]

A segunda ordem de razões, todavia, é mais específica e diz respeito exclusivamente aos atos praticados no exercício do mandato. Com efeito, o mandato aqui referido, obviamente, é o mandato político ou representativo, através do qual o conjunto dos cidadãos outorga a alguns líderes o munus de reger a coisa pública, no Brasil, tanto na órbita legislativa como na executiva. Acompanhando Antonio J. Porras Nadales: “Partiremos de la definición de la representación como un proceso de relación intercomunicativa entre sociedad y Estado centrado en la transmisión de la voz de los ciudadanos sobre la esfera pública. Se trata de un proceso de carácter reductivo, en que se opera una conversión de la pluralidad de intereses y de la multiplicidad de voluntades individuales o grupales, hasta llegar a la unidad final de la voluntad del Estado”. [10]

Para efeito da análise aqui empreendida, o principal aspecto do conceito retrotranscrito diz exatamente com essa faceta do mandato de relação intercomunicativa entre sociedade e Estado, pois tal aspecto, é dizer, o caráter intercomunicativo entre sociedade e Estado autoriza um regime jurídico singular do direito de crítica. Com efeito, segundo o precitado autor, a relação de representação política se decompõe em quatro fases, é dizer: 1ª) uma fase originária de debate, em que se procede à formação de uma vontade popular a ser expressa nas urnas; 2ª) uma, estritamente comunicativa, que se estabelece através do mandato, concebido como instrumento jurídico que condiciona determinados conteúdos e limites do processo de representação; 3ª) uma fase de controle de responsabilidade na qual se determina as formas de responsabilização dos mandatários perante a sociedade; e 4ª) a fase de atuação governamental. Essas fases, evidentemente, são compartimentadas, do ponto de vista estritamente teórico, visto que exsurgem imbricadas no cotidiano da relação representativa, servindo tão-só para hiperbolização de especificidades da relação de representação política.

            Nesse sentido, veja-se que a intercomunicação entre Estado e sociedade, embora peculiaridade da segunda fase, aparece em todas elas, pois a formação da vontade popular, o controle de responsabilidade e a ação governamental estão igualmente nucleadas num processo interativo entre Estado e sociedade, é dizer, ao menos entre a ação daquele e a crítica desta. O presente escorço, contudo, ressalta em importância os contornos apresentados pelo precitado autor no respeitante à segunda fase do processo de representação, a saber: um mandato concebido como instrumento jurídico que condiciona determinados conteúdos e limites do processo de representação. Esses conteúdos e limites, ao que se afigura, podem ser expressos ou tácitos.

            Do ponto de vista do mandato legislativo, alguns desses limites – expressos – são fixados pela própria Constituição, que, petrificando algumas de suas normas, as tornam intangíveis à manifestação dos mandatários populares. Limites tácitos também são colocados, dentre os quais sobressai com maior evidência a irrestringibilidade normativa do direito de crítica política. Com efeito, na medida em que a intercomunicação é característica intrínseca do mandato, à qual se soma ainda a necessidade de controle popular e de debates para formação da vontade popular, é evidente que os mandantes populares, ao outorgarem o mandato a seus representantes, inscrevem nesse mandato a cláusula tácita de inafastabilidade do direito de crítica da ação desses mandatários, sob pena de se negar a própria natureza de representação (que traz pressuposta a intercomunicação) do mandato político. Não se nega, é evidente, que a projeção generalizadora imposta pelo mandato político[11], em virtude da qual o mandatário representa o conjunto da nação e não seus eleitores singulares, enseja uma separação funcional entre Estado e sociedade, de tal modo a assegurar a esses representantes uma esfera de autonomia para proceder livremente na formação da vontade estatal. Todavia, tal aspecto sobressalente do instituto da representação política longe de negar, só reafirma a conclusão exposta. Com efeito, à míngua de instrumento de controle direto dos eleitores, a relação intercomunicativa, própria do mandato, perpassa por formas de controle ou de intercomunicação difusas, da qual tem maior e mais eficiência social exatamente o exercício da crítica política.

            Nesse sentido, vem a ponto, mais uma vez, a preleção de Antonio J Porras Nadales, para quem: “Si el control evaluativo de las políticas públicas supone un marco de intercomunicación entre la esfera pública y su propio ambiente o red social susceptible de interpretarse como un modelo innovador de relaciones entre sociedad y Estado, podría plantearse igualmente si en relación con la esfera estrictamente política no ha surgido también un cierto discurso social crítico (alimentado por los abundantes casos de corrupción y disfuncionalidades generadas en el ámbito del Estado de Partidos) alrededor de la propia relación representativa, en el que se expresan las pretensiones de un mayor grado de control social sobe el circuito de la representación política”. Vê-se, pois, que a crítica política, pese embora insuficiente como mecanismo de intercomunicação ou de controle da relação de mandato representativo, constitui-se no principal instrumento de intercomunicação entre mandantes e mandatários na esfera política, mesmo porque, como frisado, mínguam institutos jurídicos que possibilitem o controle direto e identificado entre eleitor e eleito.

            Reprisando o tema, calha, à perfeição, o escólio de André Hauriou: “Digamos por último que un electo, cuando controla el Gobierno o, con una razón más fuerte aún, cuando él mismo se convierte en gobernante, no habla ni actúa únicamente en nombre de su circunscripción, o más exactamente, de los electores que dentro de esta, circunscripción lo han elegido a él, sino que habla o actúa de toda la nación. Se ha convertido en un representante del Pueblo en conjunto, y no de una parte o una fracción de él”. [12] Assim, não obstante o mandato político não reproduza juridicamente o regime do mandato privado, até porque, como apontado, inexiste uma relação direta de identificação entre eleitor e eleito, fazendo com que este passe a falar difusamente em nome da sociedade, que, com relação a ele, pode se manifestar de forma igualmente difusa, através da crítica política.

            Dentro dessa esfera, portanto, pode-se, sem rebuços, afirmar que o direito de crítica se traduz num direito residual ao mandato, é dizer, quando o corpo eleitoral, no seu todo, outorga mandato aos eleitos, o faz para que falem em seu nome, tanto no exercício da função executiva, como na da legislativa, todavia essa outorga, por sua natureza ingênita, impõe a exclusão tácita dos poderes para subtrair dos eleitores o direito de criticar seus representantes eleitos no exercício desse munus público. Em termos concretos, tal quer significar que o direito de crítica aos aspectos inerentes ao mandato é ilimitável, ou seja, nenhum outro direito constitucional pode ser evocado como limite externo ao direito de crítica, que, para seu exercício pleno, apresenta como único requisito a identidade entre a crítica esgrimida e o desempenho de mandato político do criticado.

 

Biografia do Autor

Vidal Serrano Nunes Junior, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (São Paulo, São Paulo, Brasil)

Livre-docente, Doutor e Mestre em Direito pela PUC-SP. Professor de Direito Constitucional da PUC-SP. Diretor da Faculdade de Direito da PUC-SP. Procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo.

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Publicado

2021-01-09

Como Citar

NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. O direito de crítica e o mandato político: The right of criticism and the political mandate. Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura | RDAI, São Paulo: Thomson Reuters | Livraria RT, v. 5, n. 16, p. 367–373, 2021. DOI: 10.48143/RDAI.16.vsnj. Disponível em: https://rdai.com.br/index.php/rdai/article/view/261. Acesso em: 21 nov. 2024.

Edição

Seção

Memória do Direito Administrativo | Retrospective of Administrative Law