Desapropriação de bem público
Expropriation of public asset
DOI:
https://doi.org/10.48143/RDAI.14.cabmelloAbstract
Consulta. O Prefeito Municipal de Valinhos, expõe-nos o que segue, anexando documentos ilustrativos e formula-nos, empós consulta sobre a matéria.
In verbis: a) este Município, desde longo tempo, vinha tentando adquirir a Adutora de Rocinha, imóvel de propriedade da Municipalidade de Campinas e situado no vizinho território de Vinhedo; b) depois de ingentes esforços junto à Prefeitura Municipal de Campinas, logrou êxito esta Municipalidade, terminando por adquirir o referido imóvel em 18.02.1974; c) com essa aquisição, a população de Valinhos viu tornar-se palpável a realidade seu antigo sonho, já que a Administração vinha se afligindo com o problema da falta d’água, resolvido com a citada aquisição; d) ocorre que o Munícipio de Vinhedo, inconformado com a transação em pauta, declarou de utilidade pública, para ser desapropriada, em caráter de urgência, a área da antiga Adutora Municipal João Antunes dos Santos; e) entretanto, o ato expropriatório, Lei 682, de 1974, conforme cópia inclusa, sequer mencionou a finalidade de declaração, uma vez que a Adutora, imprescindível para o nosso Munícipio, pelo que representa em termos de abastecimento d’água à população, não o é em relação a Vinhedo, que se abastece das águas do Rio Capivari, ligando suas bombas uma vez por semana.
Em face do exposto, formulamos a V. Exa. a seguinte consulta: “É lícito a Vinhedo desapropriar a Adutora Municipal João Antunes dos Santos, bem essencial à população de Valinhos, de cujos serviços de ordem pública não pode prescindir?”
Parecer: O total deslinde do problema supõe o correto equacionamento de três questões que se interligam, no caso em foco, a saber: 1. Fundamentos do poder expropriatório; 2. Os bens públicos e sua função; 3. Relacionamento das pessoas jurídicas de Direito Público. Um breve exame destas diversas questões propiciará, em abordagem final, focar o problema proposto com auxílio do instrumento arrecadado por ocasião da análise de cada um dos tópicos mencionados. É o que faremos em um título derradeiro.
I – Fundamentos do poder expropriatório. Desapropriação é o procedimento administrativo pelo qual o Poder Público, fundado em utilidade pública, despoja, compulsória e unilateralmente, alguém de uma propriedade, adquirindo-a, em caráter originário, mediante prévia e justa indenização. Fundamenta a desapropriação, do ponto de vista teórico. A supremacia geral que o Poder Público exerce sobre os bens sitos no âmbito de validade espacial de sua ordem jurídica. No Direito Positivo brasileiro, o instituto se calça, como é notório, no art. 153, § 22, da Carta Constitucional (Emenda 1, de 1969), o qual reza: “É assegurado o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro, ressalvado o disposto no art. 16...” E o art. 8º da Lei Magna estatui em seu inciso XVII, f, competir à União: legislar sobre desapropriação. O Decreto-lei n. 3.365, de 21.06.1941, e a Lei n. 4.132, de 10.09.1962, enunciam as hipóteses de utilidade pública e interesse social que abrem ensanchas ao desencadear do poder expropriatório. É perceptível a todas as luzes que a justificação do instituto reside na prevalência do interesse público, o qual, bem por isso – uma vez consubstanciadas as hipóteses de necessidade, utilidade pública ou interesse social –, se afirma sobranceiramente sobre interesses menores, via de regra, privados, que devem, então, ceder passo à primazia do primeiro. É por tal razão – e só por ela – que o instituto se marca precisamente pela compulsoriedade, tão marcante que nulifica a propriedade privada, à revelia do titular, convertendo seu conteúdo na equivalente expressão patrimonial que possua. Com efeito: a prerrogativa expropriatória, como quaisquer outras que assistam ao Poder Público, não lhe são deferidas pela ordem jurídica como homenagem a uma condição soberana, mas como instrumento, como meio ou veículo de satisfação de interesses, estes, sim, qualificados na ordenação normativa como merecedores de especial proteção. De resto, todos os privilégios que adotam o Poder Público não são por ele adquiridos quia nominor leo; muito pelo contrário: assistem-lhe como condição para eficaz realização de interesses que, transcendendo o restrito âmbito da esfera particular, afetam relevantemente a coletividade. É o fato de o Estado personificar o interesse público o que lhe agrega tratamento jurídico diferenciado. Em suma: no Estado de Direito, os Poderes Públicos se justificam e se explicam na medida em que se encontram a serviço de uma função, predispostos à realização de interesses erigidos pelo sistema em valores prevalentes. Eis, pois, como conclusão do indicado, que somente a supremacia de um interesse sobre outro, isto é, o desequilíbrio entre duas ordens de interesses pode autorizar a deflagração da desapropriação, posto que esta se inspira, justamente, na necessidade de fazer preponderar um interesse maior sobre um interesse menor. Não é condição jurídica do sujeito, em si mesmo considerando, mas no nível de interesses a seu cargo que se buscará o aval legitimador do exercício expropriatório. Por mais razoáveis, sensatas, lógicas ou afinadas com os lineamentos do Estado de Direito que sejam as ponderações ora expendidas, não se pretende que a validade das assertivas feitas repouse apenas nesta ordem de razões. Em verdade, propõe-se que elas se encontram nitidamente transfundidas no sistema jurídico-positivo brasileiro e desde o nível constitucional até o plano legal, posto que o art. 153, § 22, retromencionado, expressamente indica como pressuposto inafastável do instituto a necessidade utilidade pública e o interesse social. De igual modo, os já invocados Decreto-lei 3.365 e Lei 4.132 enunciam hipóteses de necessidade, utilidade pública e interesse social, os quais representam as condições para desapropriar. É bem evidente, dispensando maiores digressões, que o artigo constitucional e os textos legais contemplam interesses públicos e utilidades públicas prevalecentes sobre interesses de menor realce, uma vez que se trata de fixar os termos de solução no caso de entrechoques de interesses e de decidir quais deles cederão passo, quais deles serão preteridos, assim, convertidos em expressão patrimonial 0 para que a utilidade preponderante extraia do bem almejado o proveito público maior que nele se encarna.
O que pretende realçar é que a própria noção de supremacia geral, deferida pelo sistema normativo às pessoas de Direito Público de capacidade política (União, Estados e Municípios), é autoridade derivada da ordenação jurídica e se esforça na qualificação dos interesses que a eles incumbe prover, de tal sorte que os poderes, os privilégios e as prerrogativas que desfrutam se constituem em um arsenal autoritário fruível, na medida em que instrumenta a finalidade protegida pelo Direito, isto é, a legitimação de seu uso depende do ajustamento aos interesses prestigiados no sistema. É o afinamento da atividade da pessoa aos valores infrassistemáticos do quando normativo que garante a legitimidade de sua expressão e não o reverso, ou seja: a legitimidade do exercício do poder – no Estado de Direito – não resulta meramente de quem o exerce, donde não ser a autoridade do sujeito que qualifica o interesse; pelo contrário: é a idoneidade jurídica do interesse que escora e valida o comportamento da autoridade a que o ordenamento atribuiu o dever-poder de curá-lo. Sendo assim, ao se examinar o instituto da expropriação, cumpre ter presente que os poderes da alçada do expropriante emergem na medida em que estejam a serviço do interesse em vista do qual tais poderes lhe foram irrogados.
Neste passo, calham à fiveleta as ponderações de Arturo Lentini: “...la causa di pubblica utilità è la vera energia che mete in moto il fato dell’espropriazione per mezzo del soggetto espropriante. Questa è la raggione per cui la causa de pubblica utilità deve considerarsi come inesistente, qualora per determinarla si sai guardato sotanto ala qualità del soggeto espropriante.” (Le Espropriazioni per Causa di Pubblica Utilità. Milão: Società Editrice Libraria, 1936. p. 54.) Ora, como o instituto expropriatório é figura jurídica destinada a assegurar a compulsória superação de interesses menores por interesses mais amplos, mais relevantes (e que, bem por isso, devem prevalecer), a ablação do direito de propriedade de alguém em proveito do expropriante depende fundamentalmente da supremacia do interesse, isto é, da supremacia da necessidade e da utilidade proclamados sobre interesse que a ordem jurídica haja categorizado em grau subalterno, por escaloná-lo em nível secundário em relação ao outro que pode se impor. Estas considerações óbvias e que parecem por isso mesmo despiciendas quando se tem em mira as hipóteses comuns de desapropriação, nas quais a necessidade ou a utilidade pública se contrapõe ao interesse particular, revelam-se, contudo, fundamentais em matéria de desapropriação de bens públicos. A limpidez cristalina deles e o amparo teórico que as abona em nada se minimizam, mas a excepcionalidade da hipótese pode surtir o risco de lhes embaçar a clareza e lhes enevoar a percepção se não forem, liminarmente, postas em evidência, ao se rememorar os fundamentos do instituto. Pode-se afirmar, pois, como conclusão deste tópico que:
“A desapropriação supõe a invocação de interesses e uma pessoa pública (necessidade, utilidade pública ou interesse social) superior ao de outra pessoa, cujos interesses sejam qualificados pela ordem jurídica como de menor relevância ou abrangência e, por isso mesmo, sobrepujáveis pelo expropriante.”
II – Bens públicos e sua função. Nem todos os bens pertencentes ao Poder Público acham-se direta e imediatamente afetados à realização de um interesse público, isto é, determinados bens encontram-se prepostos à realização de uma necessidade ou utilidade pública, servindo-a por si mesmos; outros estão afetados a ela de modo instrumental, de maneira que a Administração serve-se deles como um meio ambiente físico, no qual desenvolve atividade pública, ou seja: correspondem a um local onde o serviço desenvolvido não tem correlação indissociável com a natureza do bem, posto que este nada mais representa senão a base especial em que se instala a Administração. Finalmente, outros bens, ainda, embora sejam de propriedade pública, não estão afetados ao desempenho de um serviço ou atividade administrativa.
Em virtude da diversa função dos bens em relação à utilidade pública, há variadas classificações deles, inexistindo uniformidade na doutrina e no Direito Positivo dos vários países, quer quanto à categorização das espécies tipológicas que comportam quer no que respeita à inclusão de determinados bens em uma ou outra das diferentes espécies previstas nos esquemas de classificação. O Direito Positivo brasileiro dividiu-os em três tipos, catalogados no art. 66 do CC (LGL\2002\400), a saber:
“I – os de uso comum do povo, tais como mares, rios, estradas, ruas e praças; II – os de uso especial, tais como os edifícios ou terrenos aplicados a serviço ou estabelecimento federal, estadual ou municipal; III – os dominicais, isto é, os que constituem o patrimônio da União, dos Estados ou dos Municípios como objeto de direito pessoal ou real de casa uma dessas entidades.”
A quaisquer deles, foi outorgada a especial proteção da impenhorabilidade prevista no art. 117 da Carta Constitucional, a inalienabilidade (ou alienabilidade, nos termos que a lei dispuser) contemplada no art. 67 do CC (LGL\2002\400) e a imprescritibilidade, que resulta de serem havidos como res extra commercium, por força do art. 69 do mesmo diploma, além de outros textos especiais que dissiparam dúvidas sobre a imprescritibilidade dos bens dominicais.
Certamente existe – partindo-se dos bens dominicais para os de uso comum, tomados como pontos extremos – uma progressiva, crescente, identificação com o interesse público. Os dominicais apenas muito indiretamente beneficiam ou podem beneficiar a utilidade pública; os de uso especial já se apresentam como instrumento para sua efetivação; e os de uso comum se identificam com a própria utilidade por meio deles expressada. Demais disso, como já observaram doutores da maior suposição, se já bens acomodáveis com inquestionável propriedade em uma ou outra categoria, outros existem que parecem tangenciar a fronteira de mais de uma espécie, não se podendo afirmar, de plano, em qual dos lados da fronteira se encontra. Isto se deve ao fato de que sua adscrição ao interesse público é especialmente vinculada, no que parecerem se encontrar no limiar de transposição da categoria dos bens de uso especial para a classe dos de uso comum, tendendo a se agregar a esta, em que é mais sensível o comprometimento do bem com o interesse público.
Daí a ponderação do insigne Cirne Lima: “Entre essas duas classes de bens – o autor refere-se aos de uso comum e de uso especial – existem, no entanto, tipos intermediários; forma o conjunto uma gradação quase insensível de tons e matizes. Assim, entre as estradas e as construções ocupadas pelas repartições públicas, figuram as fortalezas que, a rigor, pode dizer-se, participam dos caracteres de umas e outras: são o serviço de defesa nacional, porque são concretização desta em seu setor de ação, e, ao mesmo tempo, estão meramente aplicadas a esse serviço, porque o público não se utiliza deles diretamente.” (Princípios de Direito Administrativo. 4. ed. Porto Alegre: Sulina, 1964. p. 78.)
A profunda identificação de certos bens com a satisfação de necessidades públicas levou o eminente Otto Mayer a incluir certas edificações e construções na categoria de bens do domínio público, submetidos, na Alemanha, ao regime de Direito Público em oposição aos demais bens estatais regidos pelo Direito Privado. Por isso, incluiu nesta classe outros bens não arroláveis entre os exemplos mais típicos de coisas públicas.
Então, depois de observar que as “estradas, praças, pontes, rios, canais de navegação, portos e a beira-mar constituem os exemplos principais de coisas subordinadas ao Direito Público”, aditou-lhes outras, algumas das quais até mesmo excludentes do uso comum.
São suas as seguintes considerações: “Mais il y a des choses publiques donc la particularité consiste dans une exclusion rigoureuse du public. Ce sont les fortifications. Elles représentent donc un troisième groupe. Elles ont le caractère distinctif de représenter directement par elles-mêmes l’ utilité publique. Cette utilité consiste ici dans la défense du territoire nationale.” (Le Droit Administratif Allemand. Paris: V Giard et E. Brière, 1905. t. 3, p. 124.)
Finalmente, o autor citado arrola, ainda, entre as coisas de domínio público: “...les grandes digues destinés a contenir les eaux des fleuves ou de la mer; elles participent, en quelque manière, à la nature des fortifications. Nous citerons encore les égouts publics; quad ils font corps avec les rues, ils sont compris dans la dominialitè de ces dernières; mais ils devront être considérés comme choses publiques em eux-mêmes quand ils se separent des rues et suivent leur cours distinctement.” (Op. cit., p. 125-126.)
Em suma, o que o autor pretendia demonstrar é que nem sempre o uso comum de todos, ocorrente sobretudo no caso das coisas naturalmente predispostas a tal destinação, revela-se traço bastante discriminar o conjunto de bens mais intimamente vinculado às necessidades públicas e, por isso mesmo, merecedor de um tratamento jurídico peculiar, em nome do resguardo dos interesses coletivos. Compreende-se, então, sua crítica a Wappaus e Ihering, expressada em nota de rodapé, onde afirma: “comme la qualité de chose publique ne peut pas être conteste aux fortifications, ceux de nos auteurs qui maintiennent l’usage de tous comme condition indispensable de l’existence d’ une chose publique se voient obligés de faire des èfforts pour sauver, em ce qui concerne les fortifications toutes au moins, quelques apparences d’un usage de tous. Ainsi Ihering, dans ‘Verm. Schriften’, p. 152, fait allusion à une destination de ce genre em les appelants ‘établissements protecteurs qui profitent non pas à l’État, mais aux individus’. Cela tout d’abord, n’est pas exact; et même si c’était vrai, cela ne donnera pas encore un usage de tous” (Op. cit., p. 125, nota 31.).
Efetivamente, também no Direito brasileiro, há certos bens que, tendo em vista a sistematização do Código Civil (LGL\2002\400), se alojariam muito imprópria e desacomodadamente entre os bens de uso especial porque, em rigor, não são apenas edifícios ou terrenos aplicados a um serviço ou estabelecimento em que se desenvolvem atividades públicas. Deveras, há uma profunda e perceptível diferença entre um prédio onde funciona uma repartição burocrática qualquer, ou ainda uma escola, um hospital, uma delegacia de polícia e o complexo de coisas que constituem uma usina geradora de energia elétrica, ou uma estação transformadora de energia elétrica, ou uma estação transformadora de energia, ou de tratamento de água, ou uma rede de esgotos, ou o conjunto de captação de água e adutoras.
Estes últimos não são apenas sedes, locais de prestação de serviço, porém, muito mais que isto, são bens funcionalmente integrados no próprio serviço, o qual consiste precisamente naquele complexo que o identifica e que proporciona a utilidade pública. Os agentes públicos atuam como operadores ou manipuladores de tais bens. O serviço proporcionado a todos é menos um produto do desempenho pessoal dos funcionários do que uma resultante da utilização inerente ao próprio bem, isto é, os bens em questão fornecem, em razão de seu próprio modo de ser, uma utilidade pública possuída em si mesma, uma vez realizada a obra em que se consubstanciam. Via de regra, são justamente bens que satisfazem não apenas uma utilidade, mas uma autêntica necessidade coletiva. Em nosso Direito, contudo, quer se classifiquem como de uso especial quer se categorizem como de uso comum de todos – na medida em que sua destinação é a utilidade coletiva, fruída por todos –, estão de qualquer modo protegidos pela inalienabilidade, impenhorabilidade e imprescritibilidade. O que se deseja ressaltar, entretanto, é que agora estes efeitos protetores dos bens públicos em geral – inclusive dominicais – outros poderão eventualmente ter suscitados e, em tal caso, dever-se-á atentar para o grau de interligação que o bem possua com a necessidade e a utilidade pública. Com efeito: o só fato do Código Civil (LGL\2002\400) ter procedido a uma classificação dos bens públicos, categorizados em uma escala descrente de interligação com a utilidade pública, obriga a reconhecer que existe em nosso sistema uma ponderação do valor com a utilidade pública, obriga a reconhecer que existe em nosso sistema uma ponderação do valor público deles e, consequentemente, que o grau de proteção que lhes deve assistir juridicamente está na relação direta do comprometimento de tais bens com a satisfação de necessidades públicas, isto é: se há um regime próprio para os bens públicos, a razão de tal fato procede de neles se encarnar um interesse agraciado com um tratamento peculiar. A defesa de tais bens assume maior relevância em função do grau em que coparticipam do interesse em questão, donde assistir-lhes uma proteção jurídica correspondente; portanto, tanto mais acentuada quanto maior for a adscrição deles à satisfação de necessidades públicas.
Isto posto, cabe indicar como conclusão deste tópico: “Nas relações controvertidas incidentes sobre bens públicos, se as partes conflitantes perseguem interesses jurídicos do mesmo nível, prepondera a proteção incidente sobre o bem público, quando o grau de adscrição dele à satisfação de um interesse coletivo atual se sedia nas escalas em que é mais elevado seu comprometimento com a realização imediata de uma necessidade pública.”
III – Relacionamento das pessoas públicas de capacidade política. Ao prever tríplice ordem de pessoas jurídicas de capacidade política – União, Estados e Municípios –, o sistema constitucional brasileiro previu, como é natural, uma discriminação de competências, expressada fundamentalmente nos arts. 8º, 13 e 15. Cada qual deve, em convívio harmônico – condição de sua coexistência e, portanto, de atendimento ao modelo constitucionalmente previsto –, prosseguir os objetivos de sua alçada sem penetração, interferência ou sacrifício dos interesses atinentes a outra pessoa de capacidade política.
Com efeito: a realização dos objetivos globais resulta da satisfação e do entrosamento dos objetivos parciais de cada qual, circunstância esta que decorre diretamente da própria distribuição de competências. É bem de ver que correspondendo-lhes interesses de diversa amplitude, posto que os dos Municípios são de menor abrangência e os da União os de abrangência maior situando-se os estaduais em escala intermediária, podem ocorrer não apenas zonas tangenciais, mas, inclusive, de fricção e até mesmo de eventual confrontação de interesses. Em casos que tais, a regra a ser extraída do conjunto do sistema, por força, haverá de ser o da prevalência dos interesses de abrangência mais compreensiva, efetivada, contudo, na estrita medida em que a preponderância afirmada seja condição insuprimível da realização das competências prevalentes, previstas no sistema, isto é, sua preponderância só pode ser admitida quando se trate de implementar função que haja sido deferida constitucionalmente. Em rigor, nas hipóteses deste gênero, não há contração da esfera de competência da pessoa responsável por interesses públicos de menor amplitude.
O que ocorre é que a própria esfera de competência desta, a priori, tem seu âmbito definido até os limites da compatibilização com os interesses de abrangência maior. O entrechoque ocorrido não é um conflito de interesses juridicamente equivalentes confrontados com igual ponderação no sistema. Um dos interesses – aquele que cede – verga-se precisamente por não mais se poder considerá-lo confinado ao âmbito de expressão própria e impetrável que lhe é pertinente. No entanto, cumpre atentar para o fato de que dita preponderância só é legítima enquanto adstrita aos limites do indispensável, isto é, de maneira a causar o menor ônus possível ao interesse que é subjugado. Toda demasia corresponde a um ultrapassar de fronteiras e, por isso mesmo, a um extravasamento da própria competência em detrimento de competência alheia. Em face do exposto, pretende-se que, do ponto de vista da lógica da ordenação jurídica, inexistem conflitos reais de direitos. Este são logicamente impossíveis. Podem ocorrer, isto sim, conflitos de interesses resolvidos sempre pelo declínio daquele que não estiver esforçado em proteção jurídica vigorante na hipótese conflitiva. Assim como o Direito é um todo harmônico, a harmonia das pessoas jurídicas de capacidade política é um princípio cardeal de nosso sistema constitucional. Tendo-se em conta que todas elas são, por força da Lei Maior, titulares de interesses públicos, seu equilibrado entrosamento e pacífico convívio é valor preservável por todos os títulos e condição insuprimível da realização do interesse público globalmente considerado.
Os legisladores da Carta Magna brasileira, tal como vem sucedendo ao longo de nossa tradição jurídica, estiveram atentos para a reiteração deste princípio. Assim, o art. 9º do texto constitucional expressamente consagra um princípio de recíproco respeito e coexistência harmônica ao dispor: “À União, Estados e Municípios é verdade: I – criar distinções entre brasileiros ou preferências em favor de uma dessas pessoas de Direito Público interno contra outra;...” O art. 19 veda à União, aos Estados e aos Municípios, no inciso II, a: “instituir imposto sobre o patrimônio, a renda ou os serviços uns dos outros.” O art. 20 estabelece: “É vedado: I – à União instituir tributo que não seja uniforme em todo o território nacional ou implique distinção ou preferência em relação a qualquer Estado ou Município em prejuízo de outro; [...]; III – aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer diferença tributária entre bens de qualquer natureza, em razão de sua procedência ou destino.”
Os dispositivos indicados ressaltam o propósito constitucional de prevenir conflito entre as pessoas de capacidade política e assegurar em suas recíprocas relações um convívio harmonioso e equilibrado. Mesmo à falta dos artigos em questão, é óbvio que o princípio da harmonia entre elas teria por força que ser considerado uma inerência do ordenamento constitucional, na medida em que todas são partes de um sistema e previstas na Lei Maior como segmentos de um conjunto total. O pacífico convívio recíproco é uma exigência racional para compatibilização de suas funções e conjugação de suas atividades parciais na unidade do Estado federal brasileiro. Contudo, os dispositivos invocados realçam e explicitam a consagração deste equilíbrio nas matérias versadas, sem prejuízo da aplicabilidade ampla e irrestrita do princípio em causa. Importa assinalar que, nos respectivos níveis, isto é, Estados perante Estados e Municípios reciprocamente considerados, estão juridicamente colocados em equilíbrio perfeito, em igualdade completa. Há, por força de todo o considerado, um integral nivelamento jurídico entre eles. De conseguinte, as prerrogativas públicas que lhes assistem em relação aos administrados não podem, em princípio, ser reciprocamente opostas, dado o absoluto em que o Direito os coloca. Para que proceda tal invocação, cumpre que o interesse afetado pela pretensão não se relacione diretamente com a atividade pública da pessoa contra a qual é invocada.
Se assim não fora, ter-se-ia que admitir, ilogicamente, que um interesse público – como tal consagrado no sistema normativo – poderia ser perturbado ou sacrificado desde que o autor do dano ao valor prestigiado fosse outra pessoa pública de capacidade política. Tal conclusão sobre ser transparentemente sem sentido e desapoiada por qualquer regra de Direito implicaria, ainda, a implícita proclamação de efeitos ablatórios de dois princípios já encarecidos: o da convivência harmônica dos interesses públicos das diversas pessoas políticas, resultante da discriminação constitucional de competências, e a do equilíbrio dos interesses das pessoas públicas do mesmo nível (Estados perante Estado e Municípios perante Municípios). Em face dos enunciados anteriores, resulta como conclusão deste tópico: “Por inexistir desequilíbrio jurídico entre as pessoas políticas do mesmo nível constitucional uma não pode opor à outra suas prerrogativas de autoridade se tal proceder acarretar interferência em interesse público a cargo daquela contra a qual se pretenda invocar um poder de supremacia.”
IV – Ao lume das considerações e conclusões dos tópicos anteriores, versemos, agora, o caso concreto sub consulta, conjugando os pontos já afirmados em exame teórico mais amplo com os dispositivos proximamente ligados ao tema, isto é, os previstos no Decreto-lei 3.365, de 21.06.3941, que mais diretamente estejam relacionados com o problema em causa. O art. 2º do referido diploma estatui: “Mediante declaração de utilidade pública, todos os bens poderão ser desapropriados, pela União, pelos Estado, Municípios, Distrito Federal e Territórios.” Já o § 2º do mesmo artigo cogita especificamente da desapropriação de bens públicos, ao estabelecer: “Os bens do domínio dos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios poderão ser desapropriados pela União, e os dos Municípios pelos Estados, mas, em qualquer caso, ao ato deverá preceder autorização legislativa.” Como se vê, foi estabelecida uma gradação no exercício do poder expropriatório, donde se haverá de deduzir que, implicitamente, é vedado o exercício de poder expropriatório em sentido inverso ao previsto. Para solver a dúvida, hipoteticamente, são concebíveis, desde logo, duas soluções extremas e opostas, isto é, uma que admitisse irrestritamente o exercício de desapropriação, em casos que tais, e outra que o rejeitasse radicalmente. Em abono da primeira, poder-se-ia carrear a seguinte argumentação:
Dispondo o art. 2º da lei expropriatória, em seu caput, que todos os bens são suscetíveis de desapropriação, ressalvado o óbice decorrente do § 2º do artigo – o qual obsta desapropriação em sentido contrário ao escalonamento previsto –, estaria genericamente franqueado às entidades públicas ali relacionadas o exercício do poder expropriatório. Em face disto, Estados poderiam desapropriar bens estaduais e Municípios bens municipais, sendo conatural a eles o exercício de todos os poderes dentro de seus territórios.
A segunda interpretação, oposta à anterior, estribar-se-ia- em que o art. 2º, caput, enunciou a regra relativa aos bens em geral, havendo, contudo, regra específica no concernente aos bens públicos: exatamente a do § 2º do mesmo dispositivo. Donde, fora das hipóteses neste previstas, nenhuma desapropriação de bem público seria tolerável, isto é, havendo o citado § 2º do art. 2º indicado quem poderia desapropriar o que em matéria de bens públicos, não existiria arrimo jurídico para exercê-la além dos casos contemplados, donde constituir-se em infringência a ela o exercício da desapropriação à margem de sua enunciação. E, ainda mais: a primeira interpretação levaria a admitir posições definitivamente inconciliáveis com a própria racionalidade do sistema jurídico. Isto porque presumiria a existência de uma supremacia entre pessoas do mesmo nível constitucional quando, em rigor, faltaria qualquer calço para o exercício de poderes de autoridade de umas sobre outras, dado o nivelamento jurídico de ambos. Sobre mais – o que é especialmente grave –, dita interpretação desconheceria o princípio do entrosamento harmônico das pessoas em causa, estabelecendo conflitos entre elas, o que, justamente, é indesejado pelo próprio sistema constitucional, atento em prevenir desentendimentos e preordenado a fixar nivelamento e harmonia entre elas.
Finalmente, incidiria no equívoco de desconhecer que conflitos desta ordem, só por si, deslocam o âmbito de interesses contrapostos; isto é, estes deixariam de ser problemas estritamente municipais ou estaduais para se converterem em problemas intermunicipais ou interestaduais, donde serem solúveis, apenas, em nível supra municipal e supra estadual, ou seja: por se haver transcendido o âmbito restrito de interesses de cada pessoa, na medida em que é gerado contraste de interesse de duas pessoas públicas diversas, coloca-se ipso facto em jogo problema que desborda os interesses puramente interiores de cada área. Diante disto, só Estados, onde se compõem e integram os interesses intermunicipais, e União, onde se integram interesses interestaduais, poderiam promover-lhes a integração, solvendo o contraste de interesses. Em suma, a primeira linha interpretativa incorreria nos seguintes equívocos:
a) atribuir ao caput do art. 2º uma abrangência e significação totalmente estranha a seus propósitos, dado que sem objetivo manifesto teria sido o de indicar a possibilidade de expropriar bens móveis, imóveis, fungíveis, infungíveis e direitos, isto é, teria se preordenado a fixar a amplitude dos objetos expropriáveis pelas pessoas referidas. A distinção entre bens públicos e bens particulares não estaria em causa, por se tratar de discrímen estabelecido em função de seus proprietários e não do próprio objeto – este sim cogitado na cabeça do dispositivo; b) ignorar que o tratamento da expropriabilidade dos bens públicos foi objeto de regra específica (a do § 2º), donde ser inassimilável sua situação à dos demais bens cogitados no caput do artigo. Daí a impossibilidade de ser exercida fora da enunciação ali prevista; c) presumir a existência da possibilidade do exercício de poderes de supremacia por uma pessoa pública sobre outra do mesmo nível constitucional, para o que inexistiria qualquer base jurídica, havendo, pelo contrário, princípio constitucional em sentido oposto; d) adotar critério interpretativo afrontoso ao princípio constitucional da harmonia das pessoas políticas, por propugnar solução que levaria à confrontação jurídica direta destas pessoas; e) desconhecer que o contraste de interesses entre Municípios é problema intermunicipal – e, por conseguinte, a ser solúvel em nível estadual – e que a oposição de interesses entre Estados é problema supra estadual e, por isso, resolúvel em nível federal, ou seja: só Estados e União, respectivamente, poderiam declarar a utilidade pública de tais bens quando conflitantes os interesses de pessoas que lhes sejam inferiores.
Certamente, a primeira solução proposta defronta obstáculos jurídicos insuperáveis, pois os argumentos que lhe são opostos evidenciam a inadmissibilidade de um irrestrito poder expropriatório de Estados sobre bens de outro Estado e de Municípios sobre bens de outros Municípios, sitos nos territórios dos eventuais expropriantes. Com efeito, incorre em críticas irrespondíveis que infirmam sua frágil sustentação. Trata-se de solução simplista, baseada em interpretação literal até certo ponto ingênua e que, sem dúvida, afronta princípios constitucionais por ignorá-los, fazendo tabula rasa de sua existência e irrefragável supremacia, esquecida de que todo labor interpretativo deve ser comandado pela acomodação a normas superiores. A segunda solução, conquanto bem mais e com esteios fincados no Direito Constitucional – matriz do instituto da desapropriação – peca pelo radicalismo, indo mais além do que o necessário para preservar os valores que encontra insculpidos na ordenação constitucional, ao negar radicalmente qualquer possibilidade expropriatória nas hipóteses sub examine.
A procedência de seus argumentos descansa em um pressuposto subjacente, dado como implícito em todos os casos, a saber: que os interesses suscetíveis de serem afetados pela eventual atividade expropriatória sejam sempre ligados diretamente à satisfação de uma necessidade pública da pessoa contra a qual se levantasse a espada da desapropriação, isto é, supõe que, em qualquer hipótese, a ameaça se propõe contra um interesse público pertinente ao eventual sujeito passivo. Entendemos que a correta resolução do problema só pode ser alcançada a partir das conclusões enunciadas ao cabo do exame dos tópicos anteriores. Ditas conclusões são, a nosso ver, as premissas, para o adequado equacionamento da questão. A partir delas, poder-se-á existir a conclusão final, o deslinde do problema em foco. Recordemo-las:
“A desapropriação supõe a invocação de interesse uma pessoa pública (necessidade, utilidade pública ou interesse social) superior ao de outra pessoa, cujos interesses sejam qualificados pela ordem jurídica como de menor relevância ou abrangência e por isso mesmo sobrepujáveis pelo expropriante.”
“Nas relações contravertidas, incidentes sobre bens públicos, quando as partes conflitantes perseguem interesses jurídicos do mesmo nível, prepondera a proteção incidente sobre o bem público sempre que o grau de adscrição dele à satisfação de um interesse coletivo atual se sedia nas escalas em que é mais elevado seu comprometimento com a realização imediata de uma necessidade pública.”
“Por inexistir desequilíbrio jurídico entre as pessoas políticas do mesmo nível constitucional, uma não pode opor a outra suas prerrogativas de autoridade se tal proceder acarretar interferência em interesse público a cargo daquela contra a qual se pretenda invocar um poder de supremacia.”
As conclusões em apreço foram devidamente justificadas nos tópicos anteriores. Façamos, pois, sua aplicação ao problema da desapropriação recíproca de bens, entre Estados e entre Municípios. Efetivamente, é intolerável o exercício da desapropriação de bem estadual por outro Estado ou bem Municipal por outro Município quando os interesses postos em entrechoque são ambos interesses públicos. Em razão do equilíbrio jurídico deles, o pretendido expropriante não tem em seu favor a maior abrangência ou relevância de interesse que o torne sobrepujante, para servir-lhe de causa do ato expropriatório.
Como o instituto da desapropriação se calça precisamente na desigualdade dos interesses confrontados, à falta dela, falece o próprio suporte do instituto. Ora, se a satisfação de necessidades públicas de um Município (ou de um Estado) é juridicamente tão valiosa quanto a satisfação de necessidades públicas de outro Município (ou de outro Estado), nenhum pode invocar em seu favor utilidade ou necessidade com força preponderante, suscetível de sobrepujar coativamente, por via expropriatória, o interesse de outro. Reversamente, se o bem atingido não estiver preposto à satisfação de uma necessidade pública, por força não se põe em causa o nivelamento de interesses, pois, em tal hipótese, ocorrerá a confrontação de um interesse público primário com interesse meramente patrimonial de outra pessoa. Neste caso, não comparecerá o óbice mencionado, franqueando-se o exercício do poder expropriatório. Outrossim, se o bem público a ser atingido está adscrito à satisfação de uma necessidade pública atual, isto é, comprometido com a realização de um interesse relevante da coletividade, tal como sucede com os bens públicos prepostos aos níveis de mais intensa vinculação ao implemento de fins públicos – dentro do que sugere a classificação do Código Civil (LGL\2002\400) –, evidentemente a proteção que o resguardo haverá de prevalecer contra a pretensão expropriatória de pessoa que persegue interesses dos mesmo nível.
Isto porque a proteção a tais bens significa, em última análise, conforme aliás se depreende da própria sistematização deles, proteção aos fins a que se destinam. O que a ordem jurídica consagra, por via do regime especial a que se submetem, é a rigorosa defesa dos interesses que por meio deles se viabilizam. Donde descaber elisão da disciplina que os ampara sempre que esta signifique comprometimento de mencionados interesses ou interferência neles. Prepondera o regime protetor se a contraposição de interesses se sedia no mesmo escalão jurídico.
Diversamente, se a pretensão incide sobre bem público não afetado à satisfação direta de uma necessidade ou utilidade pública – como ocorre no caso extremo dos bens dominicais, possuídos à moda de qualquer prioritário, como simples patrimônio de uma pessoa pública –, não mais comparece razão para se obstar uma satisfação pública do eventual expropriante. Esta não teria por que paralisar-se em face de um interesse secundário (conforme terminologia de Carnelutti) de outra pessoa pública. Em tal caso, deixaria de existir o nivelamento jurídico de interesses, por causa do caráter meramente patrimonial ou puramente incidental da propriedade, por isso mesmo, conversível em outra sem dano ou prejuízo algum para os interesses específicos da pessoa pública atingida.
Finalmente, é inadmissível, em face do equilíbrio e da harmonia das pessoas sediadas no mesmo nível constitucional, que uma invoque prerrogativa de autoridade, supremacia sobre outra, para afetar interesse da mesma qualidade, da mesma gradação de igual qualificação jurídica. Só há supremacia quando a esfera jurídica de alguém incorpore valores a que o Direito atribuiu qualificação prioritária. Em face disto, não há como irrogar-se o exercício de poder expropriatório em hipóteses deste jaez. Pelo contrário, se as pessoas se apresentam em plano desnivelado, isto é, uma, enquanto responsável pela condução de suas específicas finalidades públicas, e outra alheia à posição de realizadora de seus interesses próprios ou como titular de bem cujo sacrifício não envolve interferência naqueles interesses prioritários, desaparece o equilíbrio jurídico de ambas, liberando a força expropriatória de quem, então sim, contrapõe interesses prevalentes e, por isso mesmo, justificadores de uma supremacia.
Efetivamente, o princípio da harmonia entre as pessoas do mesmo nível constitucional, o entrosamento pacífico delas, o equilíbrio de interesses recíprocos, estão ligados indissoluvelmente à posição destas pessoas no sistema. Existe, por certo. É inquestionavelmente correta sua afirmação. Cumpre, todavia, entendê-los em sua significação precisa. Justamente por estarem ligados à qualidade dos sujeitos, têm presença quando tais sujeitos se encontram se manifestando como tal, isto é, como titulares dos interesses públicos, portanto, na qualidade que lhes é própria.
Daí que não se põe o problema de conflito indesejado, de desarmonia, de desnível, sempre que estas pessoas comparecem desligadas de sua missão natural. Em tais situações, por faltar o substrato dignificador de sua posição jurídica, desvanece a proteção jurídica peculiar que lhes é própria. Inversamente, sempre que estejam postos em causa interesses correspondentes à sua função, assiste-lhes o integral resguardo que o sistema constitucional e legal lhes defere. Por isso, só há, em rigor, problema interestadual ou intermunicipal conflitivo, quando interesses públicos de ambos se entrechoquem. Como indubitavelmente interesses desta natureza podem muitas vezes se projetar além do território de cada qual, ocorre que as soluções dos eventuais conflitos dependem da interferência das pessoas políticas em cujo âmbito se compõem os interesses respectivos das partes em oposição
Firmados todos os pontos que nos parecem relevantes para a solução do caso sub consulta, seu deslinde apresenta-se simples e natural, como fruto espontâneo da aplicação dos princípios assinalados e critérios deles deduzidos. A Prefeitura Municipal de Vinhedo propõe-se a desapropriar um bem público municipal de Valinhos, antigamente denominado Adutora de Rocinha e atualmente nomeado Adutora João Antunes dos Santos, parcialmente situado no Município de Vinhedo. Trata-se de um complexo abrangente das instalações, dutos, edificações auxiliares e área circunjacente, compreensiva das matas protetoras dos mananciais contra contaminação, poluição e redução da vazão. Insere-se, pois, no sistema de captação e derivação de água para o Município de Valinhos, sistema este que, em seu conjunto, está parcialmente em outro, conforme a exposição que precede a consulta e os documentos a ela anexados.
Pondo de parte outros vícios de que padece o ato em questão — e mais além referidos — a pretensão expropriatória ressente-se de defeito insanável. O Município de Vinhedo não pode desapropriar o bem em questão, visto se tratar de coisa pública imediatamente adscrita à satisfação de uma utilidade e até, mais que isso, de uma necessidade pública de Valinhos: o abastecimento de água. Corresponde a uma investida contra interesse público – e fundamental – de outro Município. A lei expropriatória não dá ao pretendido expropriante assistência para o exercício dos poderes que deseja deflagrar, visto que seu ato põe em xeque interesse público de outra entidade política do mesmo nível, sobre a qual, em consequência, não dispõe de supremacia, dado o equilíbrio jurídico dos interesses confrontados, circunstância que, de um lado, gera conflito intermunicipal, solúvel apenas no âmbito no âmbito estadual, e, de outro, conduz à violação do convívio harmônico e pacífico das pessoas políticas, requerido pelo sistema constitucional.
Os óbices à desapropriação resultam tanto da ofensa aos princípios constitucionais preservadores da harmonia e da posição nivelada das pessoas políticas responsáveis por interesses da mesma gradação quanto da ausência de assentamento legal para o ato, vez que o Decreto-lei 3.365 faculta aos Municípios desapropriar bens sobre os quais possam manifestar supremacia. O silêncio do Decreto-lei 3.365 sobre desapropriação de bens municipais por outro Município (e bens estaduais por outro Estado) não pode ser interpretado como implícita autorização irrestrita, pretensamente deduzível do caput do art. 2º. Antes, deste só poderá decorrer a permissibilidade expropriatória — conatural ao exercício de supremacia no próprio território — nas situações parificáveis ou análogas àquelas em que tal poder se desencadeia contra os particulares; ou seja: quando se confrontam interesses de natureza diversa, de qualidade distinta. Nunca quando se opõem interesses juridicamente qualificados em posição isonômica no sistema normativo.
Finalmente, o ato em questão tem visíveis ressaibos de uma guerra entre Municípios, de uma batalha inglória, desapoiada no interesse público, único que pode legitimamente desencadear ação governamental. Vicia-se, pois, ainda, por esta segunda invalidade, já que nos termos da exposição que precede a consulta o Município de Vinhedo se abastece de água em outra fonte, as águas do Rio Capivari, bombeadas apenas uma vez por semana, o que demonstra a desnecessidade de interferir com as vias de abastecimento de Valinhos, indispensáveis à população deste último Município.
Eis, pois, que o ato em apreço, sobre não ter causa jurídica válida, ainda afronta, pela guerra que se propõe a fazer a um Município vizinho, o princípio constitucional que reclama imperativamente a convivência harmoniosa das pessoas políticas. Além dos mais, a ausência de menção, na declaração de utilidade pública, da finalidade da expropriação, sobre invalidá-la pela inexistência de um requisito essencial, reforça os indícios de que se trata de procedimento inquinado de desvio de poder, cujo propósito, mais do que dissimulado, foi inclusive omitido. Com efeito, já em outra oportunidade deixamos escrito: “Da declaração de utilidade pública devem constar: a) manifestação pública da vontade de submeter o bem à força expropriatória; b) fundamento legal em que se embasa o poder expropriante; c) destinação específica a ser dada ao bem; d) identificação do bem ser expropriado.” (Apontamentos sobre a desapropriação no Direito brasileiro. In: RDA 111/517-518)
As exigências mencionadas, ausentes no ato da Municipalidade de Vinhedo, são indispensáveis, pois a desapropriação funda-se em hipóteses legais definidas pela legislação federal como configuradoras dos casos de utilidade pública ou interesse social. Fora delas, descabe o exercício do poder expropriatório. Logo, para que se saiba se há, ou não, arrimo jurídico para desencadeá-lo, é mister indicar o assento normativo do ato. Oliveira Franco Sobrinho, o ilustre catedrático de Direito Administrativo da Universidade Federal do Paraná, expende ao propósito considerações corretíssimas: “...a lei silencia sobre os termos da declaração de utilidade. Mas nada era preciso dizer, pois está subentendido que a qualificação do objeto se deve enquadrar nas espécies – casos apontados no art. 5º “...A própria lei que autoriza cada operação expropriatória deve não só obedecer aos padrões constitucionais, como à legislação pertinente à matéria. Assim, a lei que autorize o exercício da desapropriação deve obedecer à lei nacional reguladora do instituto “...Efetivamente, pelo seu fundamento político, jurídico, teórico e normativo, na declaração se devem conter os requisitos e as condições que a autorizam.” (Desapropriação. São Paulo: Saraiva, 1973. p. 231) Também Hely Lopes Meirelles registra que: “O ato expropriatório não contém qual norma; contém unicamente a individualização do bem a ser transferido para o domínio do expropriante e a indicação do motivo da desapropriação” (Direito Administrativo Brasileiro. 2. ed. São Paulo: RT, 1966. p. 499). Com efeito, como a desapropriação só se legitima quando arrimada nas hipóteses legais, a declaração, que é seu ato inicial indispensável, sequer adquire consistência jurídica se não enuncia em que hipótese se estriba. Esta é condição óbvia para se verificar quer a existência de um amparo normativo em tese quer um grau mínimo (isto é, de subsistência lógica, de admissibilidade racional) de legítimo interesse sobre o bem, que sirva de motivo idôneo para pretendê-lo.
Caso se desprezassem tais requisitos, a lei federal não precisaria indicar quando seria cabível a desapropriação. Outrossim, se não se der aos casos enunciados na lei uma significação mínima, isto é, um conteúdo qualquer correlacionável com as realidades concretas em que se aplicam, a enunciação legal também não significaria coisa alguma, podendo servir como mero pretexto para o expropriante. Seria, rigorosamente falando, um cheque em branco utilizável ao sabor do expropriante liberado de qualquer compromisso com o interesse público. Por derradeiro, seja dito que a circunstância do ato da Municipalidade de Vinhedo provir de seu Legislativo não lhe confere qualificação peculiar que purgue seus vícios ou a exima de contraste judicial, pois, como anota o preclaro Seabra Fagundes, a propósito da matéria: “Observe-se que, não obstante a intervenção do Poder Legislativo, a declaração é sempre um ato de natureza administrativa, por isso que se limita a definir uma situação individual. A intervenção do Legislativo não lhe dá o caráter de lei. Ele intervém aí no desempenho atribuição de conteúdo puramente administrativo” (Da Desapropriação no Direito Brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1942. p. 66.).
No mesmo sentido, Hely Lopes Meirelles: “A lei que declara a utilidade pública de um bem não é normativa é essencialmente dispositiva e de caráter individual. É lei de efeito concreto equiparável ao ato administrativo, razão pela qual pode ser atacada e invalidada pelo Judiciário, desde a sua promulgação e independentemente de qualquer atividade de execução, porque ela já traz em si as consequências administrativas do decreto expropriatório.” ([sic] Op. cit., p. 499) Isto tudo posto e considerado – e ainda que prescindidos os vícios postremeiramente enumerados –, à consulta não hesitamos em responder: O Município de Vinhedo não pode desapropriar a Adutora Municipal João Rodrigues dos Santos, pena de ofensa às normas legais que regem o instituto e aos princípios constitucionais que informam a possibilidade do exercício de poder expropriatório.
É o nosso parecer.
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