O conteúdo do regime jurídico-administrativo e seu valor metodológico
The content of the legal-administrative regime and its methodological value
DOI:
https://doi.org/10.48143/rdai/01.cabmResumen
Sumário: 1 Introdução - 2 Conteúdo do regime jurídico-administrativo - 3 Valor metodológico da noção de regime administrativo 1 Introdução1. Diz-se1 que há uma disciplina jurídica autônoma quando corresponde a um conjunto sistematizado de princípios e normas que lhe dão identidade, diferenciando-a das demais ramificações do Direito.
Só se pode, portanto, falar em direito administrativo, no pressuposto de que existam princípios que lhe são peculiares e que guardam entre si uma relação lógica de coerência e unidade compondo um sistema ou regime: o regime jurídico administrativo.
2. A farta e excelente bibliografia internacional de direito administrativo não têm, infelizmente, dedicado de modo explicito atenção maior ao regime administrativo, considerando em si mesmo, isto é, como ponto nuclear de convergência e articulação de todos os princípios e normas de direito administrativo.
Quer-se com isto dizer que embora seja questão assente entre todos os doutrinadores a existência de uma unidade sistemática de princípios e normas que formam em seu todo o direito administrativo, urge incrementar estudos tendentes a determinar, de modo orgânico, quais são abstratamente os princípios básicos que o confrontam, como se relacionam entre si e quais os subprincípios que dêles derivam.
3. Pretende-se que é instrumento útil para evolução metodológica do trato do direito administrativo, considerar o regime administrativo enquanto categoria jurídica básica, isto é, tomado em si implicitamente, como de hábito se faz, ao tratá-lo em suas expressões específicas consubstanciadas e traduzidas nos diferentes institutos.
4. Acredita-se que o progresso do direito administrativo e a própria análise global de suas futuras tendências dependem, em grande parte, da identificação das idéias centrais que o norteiam na atualidade, assim como da metódica dedução de todos os princípios subordinados e subprincípios que descansam, originariamente, nas noções categoriais que presidem sua organicidade.
5. O que importa sobretudo é conhecer o direito administrativo como um sistema coerente e lógico, investigando liminarmente as noções que instrumentam sua compreensão sob uma perspectiva unitária.
É oportuno aqui recordar as palavras de Geraldo Ataliba: “O caráter orgânico das realidades componentes do mundo que nos cerca e o caráter lógico do pensamento humano conduzem o homem a abordar as realidades que pretende estudar, sob critérios unitários de alta utilidade científica e conveniência pedagógica, em tentativa de reconhecimento coerente e harmônico da composição de diversos elementos em um todo unitário, integrando em uma realidade maior. A esta composição de elementos, sob perspectiva unitária, se denomina sistema”.2
6. A êste sistema, reportado ao direito administrativo, designamos regime jurídico-administrativo. Feitas estas considerações preliminares, importa indicar quais são, em nosso entender, as “pedras de toque” do regime jurídico-administrativo.
Partindo do universal para o particular, diríamos que o direito administrativo, entrocado que está no direito público, reproduz, no geral, as características do regime de direito público, acrescidas àquelas que o especificam dentro dêle.
Aquêle resulta da caracterização normativa de determinados interêsses como pertinentes à sociedade e não particulares.
Juridicamente esta caracterização consiste, no direito administrativo, segundo nosso modo de ver, na atrivuiçâo de uma disciplina normativa peculiar que, fundamentalmente, se delineia em função da consagração de dois princípios:
a) Supremacia do intêresse público sobre o privado;
b) Indisponbilidade dos interêsses públicos.
7. Interessam-nos, aqui, repita-se, êstes aspectos porque pertinentes ao regime público especìficamente administrativo. Concerne à função estatal, exercitada tanto através do corpo de órgãos não personalizados que compõem a chamada Administração em sentido orgânico – coincidindo “grosso modo” com os órgãos do Poder Executivo – quanto através das pessoas públicas exclusivamente administrativas, designadas na técnica do direito italiano e brasileiro como “autarquias”.
8. Os dois princípios, referidos acima, são aqui realçados não em si mesmos mas em suas repercussões no ordenamento jurídico em geral. Assim, têm importância, sem dúvida, suas justificações teóricas, mas, para o jurista, o que interessa mais, como dado fundamental, é a tradução dêles no sistema.
Com isto se esclarece inexistir o propósito de lhes conferir valor absoluto – à moda do que Duguit fazia com o serviço público, por exemplo3. Atribui-se-lhes a importância de pontos fundamentos do direito administrativo, não porque possuem em si mesmo a virtude de se importes como fontes necessárias do regime, mas porque, investigando o ordenamento jurídico administrativo, acredita-se que êles hajam sido encampados por êle e nesta condição validados como fonte matriz do sistema.
Logo, não se lhes dá um valor intrínseco, perene imutável. Dá-se-lhes importância fundamental porque se julga que foi o ordenamento jurídico que assim os qualificou.
9. Vai-se, portanto, daqui por diante, procurar examinar, do mais sintético possível, em que consiste a tradução jurídica daqueles dois princípios mencionados.
Todo o sistema de Direito Administrativo, a nosso ver, se contrói sobre os mencionados princípios da supremacia do interesse público sôbre o particular e indisponibilidade do interêsse público.
A ereção de ambos em pedras angulares no Direito Administrativo, parece-nos, desempenha funçôes explicadora e aglutinadora mais eficiente que as noções de serviço público, “puissance publique”, ou utilidade pública4.
10. Examinemos pois, ambos os princípios e expressões jurídicas peculiares que assumem, uma vez que, tanto aquêles como estas, em suas traduções particularizadas é que constituem a matéria-prima do jurista, a quem só interessam sistemas de normas e princìpios encampados pela ordem jurídica, isto é, enquanto realidades destas pronvíncias do conhecimento humano.
2 Conteúdo do regime jurídico-administrativo11. A) Supremacia do interêsse público sôbre o privado.
Trata-se de verdadeiro axioma reconhecível no moderno direito público. Proclama a superioridade do interêsse da coletividade, firmando a prevalência dêle sôbre o particular, como condição, até mesmo, da sobrevivência e asseguramento dêste último.
É pressuposto de uma ordem social estável, em que todos e cada um possam sentir-se garantidos e resguardados.
12. No campo da administração, dêste princípio procedem as seguintes conseqüências ou princípios subordinados.:
a) posição privilegiada do órgão encarregado de zelar pelo interêsse público e de exprimi-lo, nas relações com os particulares;
b) posição de supremacia do órgão nas mesmas relações.
13. a) Esta posição privilegiada encarna os benefícios que a ordem jurídica confere a fim de assegurar conveniente proteção aos interêsses públicos, instrumentando os órgãos que os representam para um bom, fácil, expedito e resguardado desempenho de sua missão. Traduz-se em privilégios que lhes são atribuídos. Os efeitos desta posição são de diversa ordem e manifestam-se em diferentes campos.
Não cabem aqui delongas a respeito. Convém, entretanto, levrar, sem comentários e precisões maiores, alguns exemplos: a presunção de veracidade e legitimidade dos atos administrativos; o benefício de prazos em dôbro para a intervenção ao logo do processo judicial; a posição de ré, fruída pela Administração, na maior parte dos feitos, transferindo-se ao particular a situação de autor com os correlatos ônus, inclusive os de prova; prazo especiais para prescrição das ações em que é parte o Poder Público, etc.
14. b) A posição de supremacia, extremamente importante, é muitas vêzes metafòricamente expressada através da afirmação de que vigora a verticalidade nas relações entre Administração e particulares; ao contrário da horizontalidade, típica das relações entre êstes últimos.
Significa que o Poder Público se encontra em situação autoritária, de comando, relativamente aos particulares, como indispensável condição, para gerir os interêsses postos em confronto, a possibilidade, em favor da Administração, de constituir os privados em obrigações por meio de ato unilateral daquela. Implica, outrossim, no direito de modificar, também, unilateralmente, relações já estabelecidas. Tal prerrogativa se expressa nas diferentes manifestações daquilo que a doutrina francesa chama “puissance publique”, correspondendo ao “jus imperii”.
15. No Direito Público, em geral, esta situação se expressa bem, nos excelentes comentários do Prof. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello que merecem transcrição literal: “A manifestação da vontade do Estado, internamente, se faz, de regra, de forma unilateral, tendo em vista o intêresse estatal, como expressão do intêresse do todo social, em contraposição à outra pessoa por ela atingida ou com ela relacionada. E, mesmo quando as situações jurídicas se formam acaso por acôrdo entre partes de posição hierárquica diferente, isto é, entre o Estado e outras entidades administrativas menores e os particulares, o regime jurídico a que se sujeitam é de caráter estatutário. Portanto, a autonomia da vontade só existe na formação do ato jurídico. Porém, os direitos e deveres relativos à situação jurídica dela resultante, a sua natureza e extensão sao regulamentados por ato unilateral do Estado, jamais por disposições criadas pelas partes. Ocorrem, através de processos técnicos de imposição autoritária da sua vontade, nas quais se estabelecem as normas adequadas e se conferem os podêres próprios para atingir o fim estatal que é a realização do bem comum. É a ordem natural do direito interno, nas relações com outras entidades menores ou com os particulares”5.
O poder de polícia administrativa é uma das expressivas emanações desta situação autoritária. Em razão da supremacia dos interêsses públicos sôbre os privados, a Administração, funcionando como guardiã do bem-estar coletivo, exerce o chamado “Poder de Polícia”, na conformidade da lei.
É o que bem se vê anotado em Caio Tácito ao conceituar o poder de polícia e expor sua conveniência com o princípio da legalidade. Diz o ilustrado mestre: “O poder de polícia é, em suma, o conjunto de atribuições concedidas à Administração para disciplinar e restringir, em favor de interêsse público adequado, direitos e liberdades individuais. Essa faculdade administrativa nao violenta o princípio da legalidade porque é da própria essência constitucional das garantias do indivíduo a supremacia dos interêsses da coletividade”.6
Assim também é princípio do direito administrativo a pertinência do poder de polícia à Administração, isto é, a prerrogativa de conformar o interêsse privado aos interêsses públicos, limitando ou condicionando o exercício daquele em função da supremacia dêstes últimos. Não se deve, entretanto, perder de vista que o exercício de tal poder pressupõe sempre uma habilitação legal expressa ou implícita.
16. Da conjugação da posição privilegiada (a) com a posição de supremacia (b) resulta a exigibilidade dos atos administrativos – o “droit do prèalable” dos franceses – e a executoriedade muitas vêzes até com recurso à compulsão material sôbre a pessoa ou coisa, como a chamada execução de ofício.
17. Também decorrem da conjugação dos preceitos mencionados, a possibilidade de revogação dos próprios atos através de manifestação unilateral de vontade, bem como decretação de nulidade dêles, quando viciados. São os princípios da revogabilidade e anulabilidade dos atos administrativos pela própria Administração Pública. Estes últimos cânones mencionados configuram a chamada autotutela.
18. Todos os princípios expostos e que se apresentam como decorrências sucessivas, uns dos outros, sofrem, evidentemente, limitações e temperamentos e, como é óbvio, têm lugar na conformidade do sistema normativo, segundo seus limites e condições, respeitados os direitos adquiridos e atendidas as finalidades contempladas em as normas que os consagram.
Entretanto, o certo é que existam tais cânones, reconhecíveis no ordenamento jurídico e aceitos tranqüila e pacificamente pela doutrina, ao passo que inexistem nas relações que contemplam interêsses privados, concernentes ao comércio jurídico estabelecido entre particulares.
19. B) Indisponibilidade dos interêsses públicos.
A indisponibilidade dos interêsses públicos significa que sendo interêsses qualificados como próprios da coletividade – internos ao setor público – não se encontram à livre disposição de quem quer que seja, por inapropriáveis. O próprio órgão administrativo que os representa não tem disponibilidade sôbre êles, no sentido de que lhe incumbe apenas curá-los – o que é também um dever – na estrita conformidade do que predispuser a “intentio legis”.
20. É sempre oportuno lembrar a magistral lição de Cirne Lima a propósito da relação da administração. Explica o ilustrado mestre que esta é “a relação jurídica que se estrutura ao influxo de uma finalidade cogente”.7 Nela não há apenas um poder em relação a um objeto, mas, sobretudo, um dever, cingindo o administrador ao cumprimento da finalidade, que lhe serve de parâmetro.
“Na administração o dever e a finalidade são predominantes, no domínio, a vontade”.8 Administração é “atividade do que não é senhor absoluto”.9 O mestre gaúcho pondera acertadamente que “a relação de administração sòmente se nos depara, no plano das relações jurídicas, quanto a finalidade a que a atividade de administração se propõe, nos aparece defendida e protegida, pela ordem jurídica, contra o próprio agente e contra terceiros”.10
Em suma, o necessário – parece-nos – é encarecer que na administração os bens e os interêsses não se acham entregues à livre disposição da vontade do administrador. Antes, para este, coloca-se a obrigação, o dever de curá-los nos têrmos da finalidade a que estão adstritos. É a ordem legal que dispõe sôbre ela.
Relembre-se que a Administração não titulariza interêsses públicos. O titular dêles é o Estado que, em certa esfera, os protege e exercita através da função administrativa, mediante o conjunto de órgãos (chamados administração, em sentido subjetivo ou orgânico), veículos da vontade estatal consagrada em lei. Caio Tácito observa com precisão exemplar que a função administrativa ou executiva “se realize dentro em normas criadas pela função legislativa...”11
21. As pessoas exclusivamente administrativas, autarquias, precisamente em razão do fato do fato de assim se qualificarem, são entidades servientes. Isto significa que por serem pessoas, podem – ao contrário da Administração – titularizar interêsses públicos, mas apenas, na condição de servas de uma vontade anterior, jungidas ao cumprimento exato dos fins que aquela vontade, por lei, lhes assinalou.
Sendo pessoas administrativas, sua província é a da relação de administração e, por isso mesmo, estão adstritas ao cumprimento de uma finalidade. Ainda aí, é o dever, a finalidade e não a vontade, que comandam sua ação. Não dispõe a seu talante sôbre os interêsses públicos; não os comandam com sua vontade; apenas cumprem, ainda, quando o fazem discricionariamente, em muitos casos, a vontade da lei. Esta, em tôda e qualquer hipótese, lhes serve de norte, de parâmetro e de legitimação.
As pessoas administrativas não tem portanto disponibilidade sôbre os interesses públicos – confiados à sua guarda e realização. Esta disponibilidade está permanentemente retida nas mãos do Estado (e de outras pessoas políticas, cada qual na própria esfera) em sua manifestação legislativa. Por isso a Administração e a pessoa administrativa, autarquia, têm caráter meramente instrumental.
22. Exposto o conteúdo e significado da indisponibilidade do interesse público, podem-se extrair as consequências deste princípio, que se vazam no regime dito administrativo, caracterizador também da pessoa pública, autarquia.
Uma vez que a atividade administrativa é subordinada à lei, e firmado que a Administração, assim como as pessoas administrativas (autarquias), não têm disponibilidade sôbre os interêsses públicos, mas apenas o dever de curá-los nos têrmos das finalidades predeterminadas legalmente, compreende-se que estejam submetidas aos seguintes princípios:
a) da legalidade;
b) da obrigatoriedade do desempeno de atividade pública;
c) do controle administrativo ou tutela;
d) da isonomia, ou igualdade dos administrados em face da administração;
e) da inalienabilidade dos direitos concernentes a interêsses públicos.
23. a) O princípio da legalidade explicita a subordinação da atividade administrativa à lei12 e surge como decorrência natural da indisponibilidade do interêsse público, noção esta que, conforme foi visto, informa o caráter da relação de administração. No Brasil o § 2º do art. 150 da Carta Constitucional de 1967 dispõe:
“Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei:”
Hely Lopes Meirelles ensina que “A legalidade, como princípio da administração, significa que o administrador público está, em tôda sua atividade funcional, sujeito aos mandamentos da lei, e às exigências do bem comum, e dêles não se pode afastar ou desviar, sob pena de praticar ato inválido e expor-se à responsabilidade disciplinar, civil e criminal, conforme o caso".13
O autor citado, não quis, certamente, restringir o princípio da legalidade ao agente, isto é, ao administrador, embora haja se referido expressamente a êle. O princípio, que formulou com tanta clareza, diz respeito à Administração em si, à atividade administrativa como um todo, englobando, é certo, seus agentes. Tanto isto é verdade que o mesmo doutrinador com precisão assinalou: “A eficiência e a validade de tôda atividade administrativa estão condicionadas ao atendimento da lei. Na Administração Pública, não há liberdade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza”. Esta última frase sintetiza, excelentemente, o conteúdo do princípio da legalidade.
A atividade administrativa deve não apenas ser exercida sem contraste com a lei, mas, inclusive, só pode ser exercida nos têrmos de autorização contida no sistema legal. A legalidade na Administração não se resume à ausência de oposição à lei, mas pressupõe autorização dela, como condição de sua ação. Administrar é aplicar a lei, de ofício.
Em suma, a lei ou mais precisamente o sistema legal é o fundamento jurídico de tôda e qualquer ação administrativa16. A expressão legalidade, deve, pois, ser entendida como “conformidade ao direito”17, adquirindo então um sentido mais extenso.
É desdobramento de um dos aspectos do princípio da legalidade o respeito, quando da prática de atos individuais, aos atos genéricos que, precedentemente, a Administração haja produzido para regular seus comportamentos ulteriores.18
24. A exata compreensão do princípio da legalidade não significa – nem exclui – o fato de que à Administração incumbe criar concretamente – embora em nível sublegal – a utilidade pública, fato que postula necessàriamente o princípio da discricionariedade.
Com efeito discricionariedade e apreciação subjetiva caminham “pari passu”. A vinculação surge quando ocorre objetiva subsunção entre a hipótese prevista na lei e o caso concreto. Ora, sendo materialmente impossível a previsão exata de todos os casos e tendo-se em conta o caráter de generalidade próprio a lei, decore que à Administração restarão, em inúmeras ocasiões, a faculdade e o dever de apreciar discricionariamente as situações vertentes, precisamente para implementar a finalidade legal a que está jungida pelo princípio da legalidade.
Entretanto, o fim legal é sempre o têrmo a ser atingido pela lei.
Vitor Nunes Leal, sempre seguro e oportuno, comenta: “Se a Administração não atende ao fim legal, a que está obrigada entende-se que abusou de seu poder... O fim legal é, sem dúvida, um limite ao poder discricionário. Portanto se a ação administrativa desatente a essa finalidade, deve-se concluir que extralimitou de sua zona livre, violando uma prescrição jurídica expressa ou implícita, o que a transpõe, por definição, para a zona vinculada”19.
25. Do princípio da legalidade são deduzíveis importantes consequências. Os atos praticados em seu desconhecimento são viciados, qualquer que seja o defeito que apresentem em face da legalidade. Inclui-se na hipótese, por conseguinte, o caso de excesso ou desvio de pode, que não é senão um subprincípio decorrente do princípio da legalidade. Ensina Caio Tácito que: “A discrição administrativa tem, portanto, como teto a finalidade legal para a competência”sendo o “abuso de poder da autoridade administrativa o reverso do princípio a legalidade da Administração Pública...”.20 21 22
26. Procede, ainda, da mesma matriz, a contrapartida da ilegalidade, isto é, o princípio da ampla responsabilidade do Estado, através do qual, se transgredi-la, incorre nas sanções previstas. Destarte ficam assegurados os direitos dos particulares perante a ação administrativa.
Com efeito, não teria sentido ou alcance jurídico algum o princípio da legalidade se a responsabilidade do Estado, em matéria de atos administrativos, não fosse o seu reverso. O art. 105 da Carta Constitucional brasileira dispõe:
“As pessoas jurídicas de direito público respondem pelos danos que os seus funcionários, nessa qualidade, causem a terceiros.
“Parágrafo único. Caberá ação regressiva contra o funcionário responsável, nos casos de culpa ou dolo”.
27. b) O princípio da obrigatoriedade do desempenho da atividade pública traduz a situação de “dever” em que se encontra a Administração – direta ou indireta – em face a lei.
O interêsse público, fixado por via legal, não está à disposição da vontade do administrador, sujeito à vontade deste; pelo contrário, apresenta-se para êle, sob a forma de um comando. Por isso mesmo a prossecução das finalidades assinaladas, longe de ser um “problema pessoal” da Administração, impõe-se como obrigação indiscutível.
Como a atividade administrativa é de caráter serviente, coloca-se uma situação coativa: o interêsse público, tal como foi fixado, tem que ser prosseguido, uma vez que a lei assim determinou. Daí a obrigação das pessoas administrativas prosseguirem o próprio escopo, característica tão realçada pelos autores.
28. Dêste princípio advém, como consequência, o caráter compulsório da filiação dos membros às entidades públicas de substrato corporativo. Com efeito, uma vez caracterizado legalmente como público, determinado interêsse e sendo fixado que seu prosseguimento se fará através de entidade corporativa cujos filiados são definidos pela lei, “ipso facto” os indivíduos designados convertem-se em membro da entidade corporativa, na forma do que houver sido estabelecido pelo diploma normativo responsável.
Realmente, se a persecução do interêsse público é obrigatória para as pessoas administrativas, impõe-se a adscrição compulsória de seus membros a fim de que aquelas possam desenvolver a atividade prevista, cujo cumprimento, na forma predeterminada pela lei, é obrigação indeclinável.
29. As entidades não-coorporativas também são de construção obrigatória, isto é, não se formam em decorrência de um ato de vontade dos particulares, ou da própria Administração, mas, contrariàmente, procedem de uma determinação legal. Eis porque se fala na peculiaridade que têm as pessoas administrativas de serem constituídas coativamente.
Nas pessoas corporativas nem sempre a obrigatoriedade da filiação se apresenta com igual cunho de compulsoriedade. Em alguns casos esta nota é menos flagrante que em outros casos. Tomemos como exemplo as corporações profissionais. Nestes casos, a lei entende que tal atividade, “verbi gratia”, o exercício da profissão liberal da medicina, depende de inscrição em entidade encarregada de sua fiscalização e disciplina. Em decorrência, para os profissionais dêste ramo não se coloca o problema de querer ou não se inserir no círculo de membros da corporação. A lei quer e é o quanto basta. A entidade se constitui desta forma, ficando compelidos a se filiar todos os que exercem ou querem exercer a profissão assim regulada. Sem embargo, os formados em medicina que não desejam exercer tal atividade não estão obrigados a se inscrever na corporação, e se subordinar à sua disciplina. Se, entretanto, pretenderem praticar a medicina, são compelidos a se filiar, o que é condição para o exercício da atividade em aprêço.
Em outras corporações públicas a compulsoriedade é mais evidente, porque não deixa nenhuma margem à opção. É o que sucede nas corporações territoriais. Já se nasce dentro delas, como membro do grupo. A filiação neste caso, prescinde de qualquer escolha. Na Europa, por exemplo, em que as pessoas locais têm, todas elas, caráter administrativo o indivíduo está necessariamente definido como membro de uma ou outra corporação pública territorial. É membro de alguma Comuna, isto é, filiado compulsòriamente, a alguma delas. Por conseguinte, sem oportunidade de concordar ou discordar, dentro do plano nacional, o indivíduo é qualificado compulsòriamente, como filiado a uma autarquia corporativa.
30. Outrossim, em face do princípio da obrigatoriedade do desempenho da atividade pública, típico do regime administrativo, como vimos vendo, a Administração sujeita-se ao dever de continuidade no desempenho de sua ação. O princípio da continuidade do serviço público, é um subprincípio, ou se quiser, princípio derivado, que decorre da obrigatoriedade do desempenho da atividade administrativa. Esta última, na conformidade do que se vem expondo e, por sua vez, oriunda do princípio fundamental da “indisponibilidade, para a Administração, dos interêsses públicos”, noção que vem se aclara ao se ter presente o significado fundamental já exposto, da “relação de Administração”.
Com efeito, uma vez que a Administração é curadora de determinados interêsses que a lei define como públicos e considerando que a defesa e prosseguimento dêles é, para ela, obrigatória, verdadeiro dever, a continuidade da atividade administrativa é princípio que se impe e prevalece em quaisquer circunstâncias. É por isso mesmo que Jèze esclarecia que a Administração tem o dever, mesmo no curso de uma concessão de serviço público, de assumir o serviço provisória ou definitivamente, no caso de o concessionário, com culpa ou sem culpa, deixar de prossegui-lo convenientemente.
O interêsse público que à Administração incumbe zelar, encontra-se acima de quaisquer outros e, para ela, tem o sentido de dever, de obrigação. Também por isso não podem as pessoas administrativas deixar de cumpri o próprio escopo, noção muito encarecida pelos autores. São obrigadas a desenvolver atividade contínua, compelidas a perseguir suas finalidades públicas.
31. Desta obrigatoriedade, logicamente, procede outro princípio, mero desdobramento do anterior – e também muito realçado pela doutrina, conforme já se viu – qual seja a impossibilidade de dissolução “sponte própria” das pessoas administrativas. Por Idêntica razão e dentro da mesma linha de raciocínio, os órgãos administrativos mesmo não personalizados, não podem ser extintos senão por lei, assim como, também. Sem ela não podem ser criados. A razão é óbvia e é sempre a mesma; a Administração desempenha atividade serviente, cumpre a lei, na forma do que foi estabelecido.
A relação administrativa desenvolve-se debaixo de uma finalidade cogente. A Administração não dispõe dos interêsses públicos a seu talante: antes, é obrigada a zelar por êles ao influxo do princípio da legalidade, já referido.
Fritz Fleiner, ao conceber administração legal como aquela posta em movimento pela lei e exercida dentro de seus limites, projetou em fórmula feliz a noção de que é a lei que dá todo o impulso à atividade administrativa.23
32. c) O princípio do controle administrativo ou tutela, vincula-se também ao princípio da indisponibilidade dos interêsses públicos. Efetivamente, o Estado, através da chamada função administrativa, procede à persecução de interêsses que consagrou como pertinentes a si próprio. A implementação dêles é feita pelo próprio Estado, mediante os órgãos da Administração. A atividade desta tem como agente o próprio Estado, enquanto submetido ao regime que se especifica através da relação de administração, nos têrmos rtro assinalados. Subjuga-se, portanto, ao princípio da indisponibilidade dos interêsses públicos, cujo sentido se esclareceu prèviamente.
Verifica-se, pois, que a função administrativa se qualifica como atividade própria do Estado, por êle mesmo desenvolvida, tendo em vista a gestão dos interêsses públicos, assim definidos através de outras de suas manifestações, e que se lhe apresentam como indisponíveis ao nível de sua manifestação administrativa, isto é, daquela que o Estado explicita através do conjunto de órgãos convencionalmente chamados de Administração.
A gestão destes interêsses indisponíveis, em princípio, realizar-se-ia tôda ela, através do próprio Estado, diretamente, isto é, mediante o conjunto de órgãos designados, em sua inteireza, como Administração.
Sem embargo, criando o Estado pessoas administrativas, portanto, entes submetidos ao mesmo regime de indisponibilidade de interêsses públicos, fraciona a unidade de sua manifestação administrativa. Exclui de si próprio a responsabilidade imediata por um conjunto de interêsses indisponíveis que, em tese, estariam concentrados em uma única pessoa e prosseguidos pela Administração. A fim de manter a coerência harmônica do todo administrativo e reter sua integridade, pôsto que a função das pessoas autárquicas é idêntica à que exercita em sua manifestação administrativa, mantém-nas sob contrôle. Com isto reconstitui, de certa forma, a unidade que quebrou – e que nunca poderia romper totalmente, sob pena de mutação qualitativa em relação em a natureza de tais pessoas.
Horácio Heredia define o contrôle administrativo sôbre pessoas autárquicas como o “juízo que realiza um órgão da Administração ativa sôbre o comportamento positivo ou negativo de uma entidade autárquica ou de um agente seu, com o fim de estabelecer se se conforma ou não com as normas e princípios que o regulam e cuja decisão se concretiza em um ato administrativo”.24
O contrôle administrativo ou tutela é o poder de que dispõe o Estado, exercitável através dos órgãos da Administração, de conformar o comportamento das pessoas autárquicas aos fins que lhe foram legalmente atribuídos. As implicações dêste contrôle e sua extensão variam de país para país, dependem do tipo de entidade autárquica e apresentam-se diversamente, em vista de legislação peculiar a cada entidade. Algumas são submetidas a regime muito estrito de tutela, a outras atribui-se liberdade maior e, conseqüentemente, afrouxam-se as relações entre controlador e controlados.
Em tese, êste poder de adequar as autarquias aos genéricos objetivos estatais, tendo em vista confiná-las ao exato cumprimento de seus fins, envolve tanto juízos e decisões da Administração concernentes à legitimidade quanto relativos o mérito dos atos praticados. Pode abrigar a prerrogativa de exame prévio ou “a posteriori” dos atos das autarquias e chega, inclusive, em certos casos, a compreender a faculdade de revogá-los, uma vez expedidos.
O contrôle compreende, ainda, o poder de manter-se a Administração informada sôbre o comportamento das autarquias, autorizando investigações e, freqüentemente, manifesta-se também, sob a forma de nomeação e demissão de administradores autárquicos. As formas de contrôle são variáveis e dependem do direito positivo.
33. a) O princípio da isonomia ou igualdade dos administrados em face da Administração firma a tese de que estar não pode desenvolver qualquer espécie de favoritismo ou desvalia em proveito ou detrimento de alguém.
Com efeito, sendo encarregada de gerir interêsses de tôda a coletividade, a Administração não têm sôbre êstes bens disponibilidade que lhe confira o direito de tratar desigualmente àqueles cujos interêresses representa.
Não sendo o interêsse público algo sôbre que a Administração dispõe a seu talante, mas, pelo contrário, bem de todos e de cada um, já assim consagrado pelos mandamentos legais que o erigiram à categoria de interêsse desta classe, impõe-se, como consequência, o tratamento impessoal, igualitário ou isonômico que deve o Poder Público dispensar a todos os administrados.
Uma vez que os interêsses que lhe incumbe prosseguir são pertinentes à Sociedade como um todo, quaisquer atos que os órgãos administrativos pratiquem devem, necessàriamente, refletir, na medida do possível, a igualdade de oportunidades para todos os administrados. “Todos são iguais perante a lei...”, proclama o § 1º do art. 150 da Constituição do Brasil. “A fortiori” todos são iguais perante a Administração e seus atos, uma vez que esta nada mais faz senão agir na conformidade das leis.
34. Vários institutos de direito administrativo refletem claramente a importância dêste princípio. Aplicação dêle encontra-se, por exemplo, nos institutos da concorrência pública e do provimento de cargo público mediante concurso.
A Administração não pode distribuir como prebenda os benefícios econômicos dos negócios em que tenha de intervir ou os empregos em seus vários órgãos. Justamente porque nenhum dêstes bens tem o cunho de propriedade particular, a utilizável ao alvedrio do titular, a Administração, que gere negócios de terceiro, da coletividade, é compelida a dispensar tratamento competitivo e eqüitativo a todo administrado.
A exigência de concorrência pública para a realização de negócios com os particulares não traduz apenas o desejo estatal de obter o melhor produto ou serviço com menores ônus. Implica, também, na obrigação de oferecer aos particulares, que se dispõem a fornecer o bem ou o serviço, a oportunidade de disputar em igualdade de condições. Assim, o instituto da concorrência pública não tem em mira, apenas, os cômodos do Estado, mas, também, encarece interêsses dos particulares em face dêle.
Não basta, portanto, que a Administração possa demonstrar que realizou operação, em tese, vantajosa para o Estado. Importa que demonstre, ainda, ter oferecido oportunidades iguais a todos os particulares. Só assim se evidenciará o tratamento isonômico a que fazem jus e a ausência de favoritismos na utilização de poderes ou na dispensa de benefícios dos quais a Administração é depositária e curadora, em nome de terceiro, por se tratar de interesses públicos.
Este é o princípio, a regra básica, que, evidentemente, comporta temperamentos e exceções, sempre determinados, todavia, pelo próprio interesse público – nunca por interesse de algum particular eventualmente beneficiário – sob pena de vício do ato praticado.
35. O princípio da isonomia na Administração não necessita, para seu fundamento, da invocação de cânones de ordem moral. Juridicamente se estriba na convincente razão de que os bens manipulados pelos órgãos administrativos e os benefícios que os serviços públicos podem propiciar são bens de tôda comunidade, embora por ela geridos, e benefícios a que todos igualmente fazem jus uma vez que os poderes públicos, no Estado de Direito, são simples órgãos representantes de todos os cidadãos (§ 1º do art. 1º da Carta de 67).
No Brasil o art. 95 da Carta Constitucional de 1967 dispõe: “Os cargos públicos são acessíveis a todos os brasileiros, preenchidos os requisitos que a lei estabelecer.”
Consagra, portanto, a igualdade de todos em face do preenchimento de cargos na Administração. Esta não pode distribuí-los entre apaniguados ou protegidos. Porque estão à disposição dos administrados que preencham as condições compatíveis com interêsse público e concernentes à natureza do cargo: “A nomeação para o cargo público exige aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos” (§ 1º do art. 95 da Carta).
Outrossim, para que não se crie, em favor de alguns poucos, “monopólio” dos cargos públicos: “E” vedada a acumulação remunerada, exceto:
I – a de juiz e um cargo de professor;
II – a de dois cargos de professor;
III – a de um cargo de professor com outro técnico ou científico (art. 97), desde que “haja correlação de matérias e compatibilidade de horários, conforme estabelece o § 1º do citado artigo da Lei Magna”.
36. Com relação ao gozo ou fruição dos serviços públicos, a Administração está, igualmente, obrigada, sempre pelo mesmo fundamento, a prestá-los a todos os cidadãos, sem discriminações. Jèze faz expressa menção a este princípio.25
37. Evidentemente, o princípio da isonomia não deve ser entendido em termos tão absolutos que se converta em impedimento do bom e eficaz desempenho da atividade pública. É claro que a Administração pode estabelecer uma série de condições variáveis conforme as hipóteses, seja para fruição de um serviço prestado, seja para fixar as habilitações necessárias à candidatura de alguém a um cargo público, seja para qualificar a natureza do serviço ou a especificação do produto que lhe deva ser prestado ou fornecido por particulares.
O que a Administração não pode fazer é, servindo-se deste expediente imprescindível às conveniências administrativas, estabelecer favoritismo para alguns e excluir outros de eventuais benefícios, procurando marginalizar a estes e favorecer àqueles. Isonomia é igualdade entre os iguais, isto é, entre os que preenchem as mesmas condições ou se encontram em situações comparáveis.
38. e) O princípio da inalienabilidade dos direitos concernentes a interesses públicos consiste em que, sendo a administração atividade serviente, desenvolvida em nível sublegal, não pode alienar ou ser despojada dos direitos que a lei consagrou como internos ao setor público.
Ao nível da Administração os interesses públicos são inalienáveis e, por isso mesmo, não podem ser transferidos aos particulares. Aplicações deste princípio são inúmeras e encontram-se bem tipificadas, por exemplo, na inalienabilidade e impenhorabilidade dos bens públicos.
39. É em razão do mesmo cânone que se pode afirmar inexistir na concessão de serviço público transferência de direitos relativos à atividade pública para o concessionário. O Interesse público que aquele serviço representa não pode ficar retido em mãos de particulares. É inevitável a transferência dele, do campo estatal para o privado. Transfere-se, simplesmente, o exercício da atividade e não os direitos concernentes à própria atividade. Pode, por isso mesmo, ser avocada a qualquer instante pelo Poder Público, como podem também ser modificadas as condições de sua prestação, por ato unilateral da Administração, sempre que lhe pareça conveniente, respeitados, apenas, os têrmos da equação econômica avançada.
3 Valor metodológico da noção de regime administrativo
40. Não se pretende seja exaustiva a enumeração feita dos princípios peculiares ao direito administrativo que formam em sua unidade sistemática o regime administrativo. A exposição deles, sobre mais, foi, como não poderia deixar de ser, extremamente sucinta, pois seu desenvolvimento é o próprio objeto do direito administrativo.
Intentou-se, simplesmente, esboçar uma rápida caracterização daquilo que informa e tipifica um conjunto de normas cujas peculiaridades conferem autonomia a determinado ramo do Direito, permitindo se lhe reconheça uma identidade própria.
O esforço empreendido, mera tentativa de localizar as linhas mestras que presidem êste setor do conhecimento jurídico, impôs como indispensável ao preenchimento de uma lacuna inadmissível e surpreendente por todos os títulos, na literatura especializada.
Com efeito, se o objeto do jurista é um sistema de normas e o tema específico do administrativista são as regras e princípios que perfazem em sua unidade o direito administrativo, a primeira tarefa que se lhe impõe, como patamar para a compreensão dos vários institutos, é a identificação das noções radicais que os embasam.
Tal procedimento, sobre oferecer maior rentabilidade científica que a simples análise compartimentada dos vários institutos, representa, outrossim, condicionamento importantíssimo para a compreensão cabal das várias figuras do direito administrativo. Nota-se, além disto, que, afinal, este é, definitivamente o único suporte para uma visão “purificada” dos institutos de direito administrativo. Só este procedimento elimina vestibularmente a imisção entre os fatores jurídicos e extrajurídicos.
41. A perspectiva formal – única compatível com o exame ortodoxo da Ciência do Direito – depende, em suas aplicações concretas, por inteiro, da identificação do regime administrativo. De outro modo como surpreender noções técnicas como a personalidade administrativa, por exemplo? Sem remissão ao regime norteador delas cair-se-ia, inexoravelmente, no plano instável dos conceitos extrajurídicos.
Se o que importa ao jurista [e determinar em todas as hipóteses concretas o sistema de princípios e regras aplicáveis – quer seja a lei clara, obscura ou omissa – todos os conceitos e categorias que formule se justificam tão-só na medida em que através deles aprisione logicamente uma determinada unidade orgânica, sistemática, de normas e princípios. A razão de ser destes conceitos é precisamente captar uma parcela de regras jurídicas e postulados que se articulam de maneira a formar uma individualidade.
O trabalho teórico do jurista construído, como é, à vista de aplicações práticas, resume-se e explica-se na tentativa de descobrir a “rationale” que congrega e unifica um complexo de cânones e normas.
As considerações acima realçam a importância e a necessidade inexorável de fixar o conteúdo do regime administrativo. Demonstram, também, à sociedade, que a compreensão da pessoa pública exclusivamente administrativa, por exemplo, pressupõe, quando menos, um esforço para determinar suas correlações com êste regime. A mesma observação vale para todo e qualquer instituo de direito administrativo.
42. Não há como formular adequadamente um conceito jurídico fora deste rigor metodológico. Com efeito, se o conceito formulado não se cinge rigorosamente ao propósito de capitar um determinado regime – cuja composição admite apenas as normas editadas pelo direito positivo e os princípios acolhidos pela sistemática dele – será desconforme com sua própria razão de ser (identificação da disciplina que preside um dado instituto).
Esta deformação sucederá sempre que se agreguem ao conceito traços metajurídicos, isto é, quaisquer ingredientes ou conotações que não sejam imediatamente derivados das próprias normas ou dos princípios por ela encampados. Eis porque noções como finalidade pública, utilidade pública, interesse público, serviço público, bem público, pessoa público, ato administrativo, autarquias, autoadministração e quaisquer outros conceitos só têm sentido para o jurista, como sujeitos ou objetos submetidos a um dado sistema de normas e princípios; em outras palavras, a um regime.
43. Em face do Direito as noções citadas nada mais contêm em si além do significado de entidades lógicas identificáveis por seus regimes. Entende-se, à visto disto, que pouco importa, então, se uma atividade relevante ou irrelevante para a coletividade. Não é isto que lhe definirá a natureza de atividade pública ou privada, mas o regime que lhe houver sido atribuído pelo sistema normativo.
Um interesse não se afirma como público ou particular pelo fato de repercutir intensa ou secundariamente sobre a Sociedade. Perante o Direito será público ou privado, na exclusiva dependência do que houver decidido a lei; portanto, unicamente em função do regime que o disciplina.
Um serviço prestado pelo Estado não se torna público pelo fato de interessar a todos e estar em suas mãos, ou em mãos de pessoa sua, mas, pela circunstância de se reger conformemente ao regime de direito administrativo, tanto que, se disciplinado pelas regras de direito privado – e o legislador é livre para assim decidir – descaberá reputá-lo serviço público.
Parece-nos ser esta a única compreensão possível em torno do problema. A entender-se de outro modo os conceitos jurídicos perderiam toda sua opera
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