Emenda e revisão na Constituição de 1988

Amendment and review in the Brazilian Constitution of 1988

Autores

  • Fábio Konder Comparato Universidade de São Paulo (São Paulo, São Paulo, Brasil)

DOI:

https://doi.org/10.48143/rdai/008.fkc

Resumo

1. A Constituição promulgada em 5 de outubro 1988 prevê, no art. 3º de suas disposições transitórias, que “a revisão constitucional será realizada após cinco anos, contados da promulgação da Constituição, pelo voto da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, em sessão unicameral”.1
Tanto pelo nomen iuris do instituto, quanto pela localização o conteúdo da norma transcrita, bem se vê que o constituinte entendeu de regular, nessa disposição transitória, algo diverso da emenda à Constituição, de que trata o art. 60 do texto permanente. Mas em que consiste, exatamente, a diferença? É o que me proponho investigar, nesta nota.
2. Principiemos pela análise semântica.
As sucessivas constituições brasileiras não apresentam uma uniformidade, quanto a esse ponto.
A Constituição imperial de 1824, ao cuidar das alterações a serem introduzidas em seu texto, usava da expressão reforma (art. 174), a qual foi mantida na primeira Constituição republicana (art. 90).
A Constituição de 1934, porém, estabeleceu uma distinção técnica entre emenda e revisão, como espécies de reforma constitucional (art. 178). A emenda era a modificação da Constituição que não atingisse a estrutura política dos Estados federados nem a organização e a competência dos Poderes. Caso contrário, haveria revisão. Por isso mesmo, o procedimento revisional era mais complexo, com acumulação de exigências em relação ao processo de aprovação das emendas.
A rigor, essa duplicidade de procedimentos já havia sido, de certa forma, criada pela Carta de 1824. O primeiro constituinte brasileiro reconheceu uma diferença de natureza entre as diversas disposições do texto. “É só constitucional”, proclamava o art. 178, “o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos poderes políticos, e aos direitos políticos e individuais dos cidadãos; tudo o que não é constitucional pode ser alterado, sem as formalidades referidas, pelas legislaturas ordinárias”. Ou seja, as normas não consideradas constitucionais ratione materiae não seriam objeto, propriamente falando, de reforma e, sim, de revogação ordinária.
Na Constituição de 1934, porém, não obstante se reconhecer uma diferença específica de fundo entre dois conjuntos de normas constantes do seu texto, não se chegou a denegar, a um deles, a natureza de normas materialmente constitucionais.
Fazendo-se abstração do vácuo constitucional instaurado em 1937, chegamos à Carta de 1946, onde a terminologia volta a ser unitária (art. 217). Toda e qualquer alteração do seu texto era considerada uma emenda. Essa orientação foi mantida na Constituição de 1967 (art. 47).
Como se percebe, o direito constitucional anterior não serve como esclarecimento interpretativo do texto de 1988. O art. 60 de sua parte permanente e o art. 3º das disposições transitórias aplicam-se, à primeira vista, à alteração de qualquer norma da Constituição. Sob esse aspecto, portanto, a Carta Constitucional em vigor não estabelece nenhuma distinção ratione materiae entre as suas normas. São todas de idêntica intensidade, posição hierárquica ou grau de validez; o que torna mais intrigante a compreensão da ratio juris que levou o constituinte a estabelecer dois processos distintos do texto constitucional.
3. No direito constitucional comparado, a análise semântica não é, tampouco, esclarecedora.

O termo revisão aparece em algumas Constituições em vigor, mais ou menos recentes, para significar toda e qualquer alteração de seu texto. Assim, por exemplo, na Constituição suíça (arts. 118 e ss.), na italiana (arts. 138 e 139), na francesa (art. 89) e na portuguesa (arts. 286 e ss.).
Na Constituição espanhola de 1978, porém – analogamente à Constituição da Áustria art. 44 – a revisão é uma espécie de reforma mais séria: é a reforma total da Carta, ou a reforma parcial de disposições consideradas mais importantes que as outras, porque dizem respeito à essência do regime (arts. 166 e seguintes). A decisão de rever totalmente a Constituição deve ser aprovada com um quorum qualificado, nas duas casas das Cortes Generales, e acarreta a dissolução automática destas, a fim de que o povo eleja novos representantes, especialmente encarregados de reconstitucionalizar o país. Uma vez aprovada no parlamento, a revisão constitucional é submetida a referendo popular.
A distinção entre revisão total e revisão parcial aparece também na Constituição suíça. O texto em vigor, aliás, é o resultado de uma revisão total da Constituição de 1848, efetuada em 1874.

Na Constituição americana, a possibilidade de reforma total é prevista implicitamente no article V, ao se falar na convocação de uma convenção especial para votar emendas, a serem ratificadas por pelo menos três quartos dos Estados.

4. O texto constitucional brasileiro de 1988, porém não estabelece nenhuma distinção de âmbito ou alcance entre a emenda, regulada no art. 60 do corpo permanente de normas, e a revisão, prevista no art. 3º das disposições transitórias.
Interpretar esta última como significado a reforma total da Carta seria incongruente, pois o procedimento de revisão é menos complexo e exigente que o das emendas (que seriam, portanto, nessa interpretação, reformas parciais). Em primeiro lugar, não há previsão de iniciativa exclusiva para desencadear-se o processo de revisão, ao contrário do que sucede com as emendas, que só podem ser propostas pelas pessoas ou órgãos indicados no art. 60. Ademais, a revisão é deliberada pelo Congresso em sessão unicameral; o que significa reduzir, sensivelmente, o poder do Senado, de composição bem menos numerosa que Câmara dos Deputados. Finalmente, enquanto que a proposta de emenda deve ser discutida e votada em dois turnos, com o quorum deliberativo de três quintos em ambas as Casas, para a aprovação de revisão basta o voto da maioria absoluta dos membros do Congresso.

A distinção entre emenda e revisão, conforme o alcance da deliberação, foi por mim proposta antes da votação da Constituição de 19882. Emenda seria a “alteração de dispositivos da Constituição, que permanece em vigor”. A revisão constitucional consistiria “na substituição da vigente Constituição por outra” (art. 233 do meu anteprojeto). O objetivo claro da proposta era o de impedir, definitivamente, a reedição da lamentável farsa da reconstitucionalização do país pelo Congresso Nacional, sem se convocar uma autêntica Assembleia Constituinte e sem ratificação por referendo popular.
A proposta, obviamente, não foi sequer considerada pelo constituinte de 1988.

5. A impressão que se tem é de que o art. 3º do Atos das Disposições Constitucionais Transitórias procurou incorporar, deformadamente, o estatuído no art. 286, primeira alínea, da Constituição portuguesa. Deu-se, aí, à Assembleia da República, o poder de “rever a Constituição decorridos cinco anos sobre a data da publicação de qualquer lei de revisão”. Trata-se de revisão ordinária do texto, cujo processo, por isso mesmo, abre-se com a simples apresentação de um projeto no Legislativo3. Mas é um poder de revisão permanente, que renasce a cada cinco anos da publicação de alguma reforma da Constituição. Antes de vencido o quinquênio, é possível alterar-se a Constituição (revisão extraordinária), mas, para tanto, é indispensável haver a decisão preliminar de uma maioria qualificada de deputados (art. 286, alínea 2).

O fato de a Constituição brasileira não atribuir exclusividade de iniciativa, para essa revisão do art. 3º do ADCT (LGL\1988\31), nem exigir um quorum deliberativo qualificado na sessão unicameral do Congresso está a indicar que se teve em mira, no caso, uma reforma simplificada da Constituição. A ideia subjacente parece ter sido a de se submeter o novo sistema constitucional a um ensaio probatório, de curta duração, a fim de se identificarem os pontos mais fracos do conjunto, suscetíveis de correção por um procedimento menos exigente.
A colocação da norma entre as disposições transitórias reforça essa interpretação. O dispositivo em questão não é de vigência permanente, o que significa que o Congresso está autorizado a lançar mão desse processo de revisão uma única vez. Tudo o que não for votado na ocasião terá que ser apresentado, ulteriormente, sob a forma de emenda constitucional.
6. A lacunosidade do dispositivo em exame não deixa, porém, de suscitar graves questões de interpretação.

Já frisei que a Constituição não estabeleceu nenhum poder de iniciativa exclusivo para a abertura do processo de revisão. Parece razoável, portanto, entender-se que ele pode ser instaurado mediante proposta de qualquer das pessoas ou entidades enunciadas no art. 61, como se se tratasse de iniciativa em matéria de legislação complementar ou ordinária.

Cabe, assim, a meu ver, iniciativa popular para a revisão constitucional prevista no art. 3º do ADCT (LGL\1988\31). Se o Congresso tomar conhecimento do projeto de iniciativa popular, sob o pretexto de que a norma do art. 61, §2º carece de complementação, pode-se lançar mão do mandado de injunção para superar esse obstáculo.
Tendo em vista o fato, segundo penso incontestável, de que se trata de uma possibilidade única e excepcional de reforma, seria preciso concentrar todos os projetos de revisão apresentados num único processo, a ser ordenado segundo um só e mesmo procedimento. É claro que o termo inicial para a apresentação de projetos de revisão constitucional seria o dia 5 de outubro de 1993, não sendo admissível a abertura do processo revisional antes dessa data. Mas, não havendo data marcada para se concluir a revisão, seria curial que a Mesa do Congresso, desde que apresentado o primeiro projeto, fixasse um prazo razoável para a apresentação de outros com o mesmo objetivo, a fim de que todos eles fossem discutidos e votados em conjunto.
Como proceder se, no momento de abertura do processo de revisão, houver em tramitação projetos de emenda constitucional?
A rigor, não há interferência de um processo sobre outro, pois, como salientei, cuida-se de institutos distintos e separáveis. Iniciada, portanto, a revisão constitucional, não ficam prejudicados os processos de emenda eventualmente em curso. Mas o autor do projeto deveria ter o direito de convertê-lo em proposta de revisão, a fim de aproveitar a ocasião única que se apresenta, de reforma simplificada da Constituição.

Um outro ponto a assinalar, não abrangido explicitamente pela disposição lacônica do art. 3º do ADCT (LGL\1988\31), é o de que se aplicam também à revisão as proibições constantes do § 4º do art. 60 da Constituição, pois tais vedações correspondem a um princípio cardeal de limitação do poder constituinte derivado. Somente o povo diretamente, ou seus representantes qualificados, reunidos em Assembleia Constituinte especialmente convocada, têm legitimidade para abolir a federação e a separação dos Poderes, suprimir o voto direto, secreto, universal e periódico, ou alterar a expressão constitucional dos direitos e garantias individuais.
A essas proibições deve-se ainda acrescentar a de se alterarem, por meio de processo de revisão, o regime político e a forma de governo, os quais serão objeto de plebiscito em 7 de setembro de 1993 (ADCT (LGL\1988\31), art. 2º). Diante da expressão direta da vontade do soberano, nenhum órgão constituído pode repronunciar-se sobre o assunto e, menos ainda, contrariar a deliberação popular.
Finalmente, não é inútil assinalar que o quorum deliberativo da revisão constitucional é o da maioria absoluta dos membros do Congresso Nacional, reunidos em sessão unicameral; não o da maioria dos parlamentares presentes no momento da votação.

Encerrado o processo deliberativo no Congresso Nacional, seria admissível submeter a revisão, assim aprovada, ao referendo popular?

A resposta é, à primeira vista, negativa, pois a Constituição não prevê o referendo no processo de aprovação de emendas, e não se vê a priori, por que razão ele deveria se impor em matéria de revisão. Pode-se, nesse sentido, argumentar que a Carta de 1988 não consagrou a soberania popular direta como princípio absoluto e, sim, em posição concorrente ou complementar à soberania representativa. Este, aparentemente, o sentido da expressão final do art. 1º, parágrafo único: nos termos desta Constituição. Em suma, as manifestações da soberania popular direta seriam admissíveis, tão-só, nos casos expressamente previstos.
Em sentido oposto, vale lembrar que, dos três instrumentos de participação popular no processo de criação do direito – a iniciativa, o referendo e o plebiscito -, enunciados no art. 14 como manifestações da soberania popular, somente o primeiro aparece regulado na Constituição (arts. 27, § 4º; 29, XI e 61, § 2º) e, ainda assim, incompletamente. Vale dizer, a Constituição, nessa matéria, limitou-se a enunciar princípios, sem construir institutos, perfeitos e acabados.
Trata-se, no caso, de autênticos princípios substantivos e não de princípios adjetivos ou instrumentais, para retomarmos a classificação proposta pelo Prof. Jorge Miranda4. Quer isto significar que se está, aí, diante de um dos fundamentos da ordem política, qual seja, a soberania popular. Ainda que se sustente que a manifestação direta dessa soberania é constitucionalmente equipolente e não superior à sua manifestação indireta, por intermédio de representantes, não se pode negar que essa equipolência impede se considerem admissíveis de modo expresso no texto constitucional. Tal seria colocar a soberania popular direta em deste, o que não se coaduna com o enunciado do art. 1º, § 1º da Constituição de 1988. Assim, a fórmula final desse dispositivo – “nos termos desta Constituição” – significa, simplesmente, que o povo exerce sua soberania de modo direto pelas formas indicadas na Constituição, isto é, por meio da iniciativa popular, do plebiscito e do referendo (art. 14); e não que tais instrumentos são aplicáveis, tão-só, nos casos em que a Constituição expressamente o declara.
Há mais, ainda.
Não se deve confundir o princípio da soberania popular com as formas do seu exercício. Aquele é, realmente, a pedra angular da democracia e se acha consagrado, na consciência jurídica universal, como fundamento – efetivo ou ideal – de toda organização política. Já as formas de exercício da soberania popular são expressões instrumentais desta, são técnicas de sua realização, cuja modelagem depende, sempre, da deliberação do povo soberano, no momento constituinte originário. Logicamente, só o povo, como titular da soberania, é que pode declarar, ao constituir o Estado, de que modo pretende exercê-la.
Ora, para que se pudesse dizer, com lógica certeza, que o povo se autolimitou no exercício da soberania, abrindo mão do poder de exercê-la diretamente, ou que, tendo o admitido, em princípio, o exercício direto do poder soberano, pretendeu fazê-lo apenas em casos especiais e taxativos, seria preciso que que a Constituição – que é a manifestação originária da soberania – o declarasse, explicitamente.

Temos, assim, revertido o argumento acima exposto, em contrário à admissibilidade do referendo nas reformas constitucionais. Havendo a Constituição de 1988 admitido o exercício da soberania popular como princípio, a sua exclusão, para as emendas e a revisão, dependeria de uma norma explícita. Como esta não existe, deve-se concluir que toda e qualquer reforma da Constituição pode ser ratificada – como também iniciada – pelo voto popular. Seria, no entanto, da maior conveniência que esse princípio constitucional implícito fosse declarado e regulado por meio de lei complementar.
São estas, segundo me parece, as principais questões suscitadas pelo adualismo da reforma constitucional – emenda ou revisão –, criado pela Carta de 1988.
São Paulo, fevereiro de 1990.

Biografia do Autor

Fábio Konder Comparato, Universidade de São Paulo (São Paulo, São Paulo, Brasil)

Professor titular aposentado de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, instituição de que é Professor Emérito. É Doutor em Direito pela Universidade de Paris e Doutor honoris causa pela Universidade de Coimbra.

 

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Publicado

2019-03-30

Como Citar

COMPARATO, Fábio Konder. Emenda e revisão na Constituição de 1988: Amendment and review in the Brazilian Constitution of 1988. Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura | RDAI, São Paulo: Thomson Reuters | Livraria RT, v. 3, n. 8, p. 383–389, 2019. DOI: 10.48143/rdai/008.fkc. Disponível em: https://rdai.com.br/index.php/rdai/article/view/159. Acesso em: 23 nov. 2024.

Edição

Seção

Memória do Direito Administrativo | Retrospective of Administrative Law