Aspectos polêmicos da Lei de Parcelamento Urbano

Controversial aspects of the Urban Installment Law

Autores

DOI:

https://doi.org/10.48143/RDAI.15.toshiomukai.1

Resumo

1.A questão da revogação da legislação anterior

Lei 6.766, de 19.12.1979 (LGL\1979\27), conhecida como Lei Lehmann, a par dos inegáveis avanços que propiciou, no sentido de possibilitar um controle mais efetivo da urbanização no Brasil, dispondo regras civis, urbanísticas, ambientais e penais sobre o ato de parcelar o solo urbano, de outro lado, por falta de maior cuidado dos legisladores em face da complexidade da matéria, contém falhas que têm propiciado muitas dúvidas em relação à sua aplicação. Destarte, a Lei trouxe problemas sérios, especialmente em face de suas lacunas, e que julgamos conveniente esclarecer. Nesse sentido, vamos aqui focalizar alguns dos problemas que a prática da aplicação da Lei 6.766/79 (LGL\1979\27) tem suscitado, e que, de certa forma, poderíamos dizer que são seus aspectos polêmicos.Tais problemas, que tivemos condições de detectar, são os seguintes: O art. 55 da Lei limitou-se a dizer que “revogam-se as disposições em contrário”. Isso gerou muitas dúvidas quanto à permanência de partes da legislação anterior. Mas os arts. 1º e 2º da Lei mostram que ela regula inteiramente a matéria relativa a loteamentos urbanos. O Dec.-lei 4.657, de 04.09.1962 (Lei de Introdução ao Código Civil (LGL\2002\400)) – art. 2º, § 1º, impõe a revogação de lei anterior pela nova lei: quando expressamente a declare, quando suas disposições são incompatíveis, e quando regule inteiramente a matéria de que tratava a antiga lei. Regular inteiramente a matéria não é regular ponto por ponto, mas sim regular globalmente a matéria (cf. Oliveira Ascenção, Introdução à Ciência do Direito, Fundação Kalouste Gulbenkian). Assim, do Dec.-lei 58/37 (LGL\1937\2), apenas os arts. 15, 16 e 22, por conterem matéria extravagante, continuam em vigor; o Dec.-lei 271/67 (LGL\1967\15) permanece em vigor apenas quanto à concessão do direito real de uso (arts. 7.º e ss.), por constituir matéria extravagante. A propósito deste aspecto, o Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo, na Ap. Cív. 7.520, declarou que, na inexistência de Lei Municipal fixando prazo para a aprovação de parcelamento urbano, subsiste aquele previsto pelo Dec. Federal 3.079, de 15.09.1938 (LGL\1938\1) (art. 1º, §§ 2º e 3º). Decisão, como vimos, errônea, que foi superada pela decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, prolatada no MS 8.840-SP, onde se decidiu (corretamente) que “o Dec. 3.079, que dava 90 dias de prazo para aprovação de loteamento pelas autoridades competentes, está revogado com o Dec.-lei 58/37 (LGL\1937\2), no que toca ao uso do solo urbano”. Além do mais, o Dec. 3.079/38 (LGL\1938\1), fixando prazo para autoridades municipais e estaduais, era duplamente inconstitucional, porque fixação de prazo é matéria estritamente administrativa, e portanto, de competência de cada nível de governo, e porque decreto não pode inovar no mundo jurídico.

2.Loteamentos de áreas rurais para fins urbanos – Os sítios de recreio Antes da Lei, os loteamentos de imóveis rurais podiam abranger: para fins agrícolas, de urbanização, e para formação de sítios de recreio. Todos eram aprovados pelo INCRA, com audiência da Prefeitura Municipal. Após a Lei 6.766/79 (LGL\1979\27), o seu art. 3º somente admitiu loteamentos para fins urbanos em área dentro do perímetro urbano ou em zona de expansão urbana, declarados em lei municipal. De acordo com o art. 53 da Lei, antes da aprovação do loteamento, que nessa ocasião deverá já estar abrangido pela zona de expansão urbana, há que se transformar a área rural em urbana – audiência do INCRA e aprovação da Prefeitura Municipal (o art. 53 é norma extravagante). Discute-se a questão de poder ou não ser implantado um loteamento para sítios ou chácaras de recreio na zona rural. Essa questão envolve a consideração de ser ou não o sítio de recreio, para fins urbanos. Sempre entendemos que o sítio de recreio é para fins urbanos, e que, portanto, não pode ser implantado em zona rural. Nesse sentido também, o próprio INCRA, pela sua Procuradoria Jurídica da Coordenadoria Regional de São Paulo, na Inf. CR (08) J. – 467/82, conclui: “a) a chácara de recreio não se enquadra no conceito de imóvel rural, pois não se destina à exploração extrativa vegetal, agrícola, pecuária ou agro-industrial. Mesmo que se pensasse em plantações num sítio de recreio, estas jamais poderiam se configurar numa exploração econômica, quando muito, seria doméstica; b) a chácara de recreio enquadra-se perfeitamente no conceito de imóvel urbano, como ‘lote destinado a edificação de qualquer natureza’” (grifamos). Também o Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo já se manifestou no mesmo sentido: “Ora, lazer e recreação são atividades, tipicamente urbanas. Se o condomínio tem essa finalidade não pode ser considerado rural” (Ap. Cív. 2.349-0).

Por sua vez, o Prov. 2/83, da Eg. Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo, determina: “149 – O parcelamento de imóvel rural para fins urbanos deve ser precedido de: a) lei municipal que o inclua na zona urbana ou de expansão urbana do Município (Lei 6.766/79 (LGL\1979\27), art. 3º); b) averbação de alteração de destinação do imóvel, de rural para urbano, com apresentação de certidão expedida pelo INCRA (Lei 6.766/79 (LGL\1979\27), art. 53 e Portaria 17-b, do INCRA).”  

3.Loteamentos fechados ou em condomínio

Este assunto tem sido muito discutido. Sabe-se que, na prática, esses loteamentos têm sido efetuados pelas seguintes formas: a) Com invocação do art. 8º da Lei 4.591/64 (LGL\1964\12) – Lei de Condomínios e Incorporações, desde que o art. 3º do Dec.-lei 271/67 (LGL\1967\15) mandava aplicar, no que coubesse, aquele diploma aos loteamentos. Ocorre que aquele dispositivo está revogado pela superveniência da Lei 6.766/79 (LGL\1979\27) e ademais, a Lei de Condomínios não admite o terreno divorciado da construção. O Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo, na Ap. Cív. 2.349-0 – Patrocínio Paulista, teve ocasião de deixar fixado: “A instituição da Lei 4.591/64 (LGL\1964\12), posto que não se aplique somente a edifícios, tem sua existência subordinada à construção de casas térreas, assobradadas ou de edifícios. Sem a vinculação do terreno às construções não há condomínio que se sujeita à lei especial. A instituição pretendida pela recorrida não trata da construção de casas. Não há vinculação entre as frações ideais do terreno com edificações. Ausentes os pressupostos contidos nos arts. 7º e 8º da Lei 4.591/64 (LGL\1964\12), é evidente que o condomínio a que se refere o título não tem a ver com o regulado neste diploma legal.” b) Condomínio por frações ideais – Diógenes Gasparini entende não ser possível a instituição deste tipo de condomínio com relação a loteamentos. O Corregedor-Geral da Justiça do Estado de São Paulo, no mesmo sentido, decidiu: “O expediente de se retalhar imóvel urbano para venda de frações ideais localizadas, com indicação da respectiva área e metragem, não nomeação de todos os condôminos e sua preferência em caso de alienação, bem como o estabelecimento da indivisibilidade por prazo superior a cinco anos, infringe o art. 623 do CC (LGL\2002\400) e constitui burla às disposições da Lei 6.766/79 (LGL\1979\27), devendo ser impedido o seu registro.” O Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo, no mesmo Acórdão antes referido (Ap. Cív. 2.349-0 – comarca de Patrocínio Paulista), fixou posição contrária a este tipo de condomínio baseado nos seguintes pontos: “O condomínio, não obstante, por definição, não pode resultar do ato unilateral do único proprietário. Com efeito, se o condomínio pressupõe a existência de mais de um proprietário, não se concebe a compropriedade quando uma única pessoa detenha o domínio de toda a coisa. O Código Civil (LGL\2002\400) opõe outro obstáculo ao registro perseguido pela recorrida. Estabelece o instrumento de instituição que o condomínio é perpétuo e absoluto. Nada mais contraria tanto a lei. Com efeito, o Código Civil (LGL\2002\400), dá ao condomínio o direito de, a todo tempo, exigir a divisão da coisa comum (art. 629). Ad argumentandum, se fosse possível à solitária dona do imóvel instituir a comunhão, o termo máximo não poderia ser superior a cinco anos. A instituição de condomínio é sempre consequência e não causa. Resulta sempre de uma transferência de domínio, quer seja voluntário, quer seja forçado, quer decorre de atos inter vivos, quer de transmissão mortis causa. Não se pode, diante disso, aceitar um instrumento de instituição de condomínio. A indivisão é criada com efeito, v.g., de uma venda e mais de uma pessoa, ou de uma doação. O título que ingressa no Registro de Imóveis é o da venda e compra ou da doação; o condomínio surge no Registro de Imóveis automaticamente, sem instrumento próprio e exclusivo.” Por último, o Prov. 2/83, da Eg. Corregedoria-Geral da Justiça, no item 152 estabelece: “152 – É vedado proceder a registro de vendas de frações ideais, com localização, numeração e metragem certa, ou de qualquer outra forma de instituição de condomínio ordinário que desatenda aos princípios da legislação civil (CC (LGL\2002\400), art. 623 e ss.), caracterizadora, de modo oblíquo e irregular, de loteamentos ou desmembramentos (Parecer aprovado no Proc. CG-59.044/81, DOJ de 27.10.82).” c) Concessão do direito real de uso das vias de circulação e áreas livres – A Lei 9.413/81 (31.12.1981), do Município de São Paulo, prevê o loteamento fechado de forma correta (a nosso ver). O art. 22 prevê a existência do loteamento L-4, caracterizado pela outorga da concessão do direito real de uso para as vias de circulação e para 1/3 das reservas destinadas a áreas verdes. O § 2º desse artigo diz que “fica o Executivo autorizado, independentemente de concorrência pública, a outorgar concessão de direito real de uso das vias de circulação e das áreas verdes citadas no caput”. É forma próxima de implantação de loteamento fechado, e dá ao Município algum controle sobre essa forma de urbanização, o que as duas outras formas não oferecem. A desafetação e a outorga de concessão dão ao Município a possibilidade de impor sua vontade nesse tipo de urbanização. Fica em aberto, no entanto, a questão da utilização restrita de bens de uso comum do povo por uma minoria.

4.Loteamentos de áreas sem o domínio pleno 

Em princípio, para lotear, há necessidade do domínio pleno da gleba (o art. 18 da Lei 6.766/79 (LGL\1979\27) exige o título de propriedade). Contudo, pode haver loteamento, excepcionalmente, em terreno de marinha, onde há a enfiteuse ou aforamento, distinguindo o domínio útil – domínio somente do titular original. A Lei que trata do assunto (Dec.-lei 9.760/46 (LGL\1946\2)) prevê a propriedade aparente, como um direito real amplo, sendo que o art. 102 admite transmissão inter vivos dessa “propriedade” com assentimento do SPU. Pode, admite a lei, haver loteamento, com venda do domínio útil. Enfiteuse é um direito real onde o proprietário tem o domínio direto, restrito e o foreiro pode ter até perpetuamente poderes de domínio (Orlando Gomes). O art. 64 do Dec.-lei 9.760/46 (LGL\1946\2) prevê que os imóveis da União podem ser aforados quando não utilizados em serviços públicos. E o art. 163 prevê a alienação de terrenos quanto à constituição de lotes, com observância das “posturas” municipais.

 5.Lei aplicável (quanto ao Registro) às aprovações de loteamentos anteriores à Lei 6.766/79

Em face do art. 6º da LICC (LGL\1942\3) – incidência imediata da Lei sobre situações em curso, o Prov. 6/80 da 1ª Vara de Registros Públicos previa o prazo de 180 dias para registro, a partir da data da publicação da Lei (20.12.1979), no caso de aprovações anteriores à Lei. Discutiu-se da possibilidade de aplicar-se a pena de caducidade a casos pretéritos, posto que se trata de penalidade e porque iria atingir, tal interpretação, direito adquirido. Mas, o STF, no RE 96.333-GO, 2ª T., Rel. o Min. Moreira Alves, decidiu pela aplicação da nova Lei no caso: “Registro de loteamento – Alegação de ofensa a direito adquirido. Inexistência de violação do § 3º do art. 153 da CF (LGL\1988\3), pois um dos fundamentos capazes de manter, de per si, a decisão recorrida é o de que existe ação real que impossibilite o registro do plano de loteamento aprovado anteriormente à Lei 6.766/79 (LGL\1979\27), mas ainda não registrado. Trata-se, pois, de matéria referente a causa impeditiva de registro, e, nesse particular, vigora o princípio de que causa impeditiva de registro criada por lei nova se aplica a registro posterior de loteamento anteriormente aprovado” (STF – RTJ 104/1.216-1.222).   

6.Prazo para execução de obras – Garantias e repasse de custos

a) Prazo de execução de obras – O art. 18 da Lei 6.766/79 (LGL\1979\27) dá 180 dias de prazo para execução de obras? Essa questão surgiu porque, se o art. 18 fixa 180 dias para que o projeto, desde sua aprovação pela Prefeitura, seja apresentado a registro, ter-se-ia exatamente esse prazo para a execução das obras, uma vez que o mesmo art. 18 exige, como um dos documentos necessários para o registro, termo de verificação de execução das obras. Então, a maioria das Prefeituras, sabendo que tal prazo é exíguo, prefere o cronograma de execução de obras com prazo máximo de dois anos, previsto com alternativa pelo mesmo art. 18. Com relação ao termo de verificação, entendemos que, necessariamente, aí não há sempre 180 dias apenas para execução de obras. É que, antes da aprovação definitiva, segundo Hely Lopes Meirelles, pode existir uma autorização (licença prévia) relativa ao projeto de loteamento para execução das obras. Terminadas essas haverá a aprovação definitiva, e somente então correrá o prazo de 180 dias. Esta solução, no entanto, não interessa ao loteador que tem urgência para registrar o loteamento para poder efetuar as vendas (art. 37 da Lei 6.766/79 (LGL\1979\27)). Então a solução estará no cronograma. A questão que tem surgido aqui é se o Município pode ficar cronograma com prazo maior (ou mesmo prorrogar) do que aquele fixado pela Lei Federal. A nós nos parece de flagrante inconstitucionalidade aquela fixação, posto que o estabelecimento de prazo administrativo para execução de obras de infraestrutura só interessa ao Município e, como tal, cai inteiramente no seu peculiar interesse. A União não poderia fixar prazo administrativo para o Município, por incorrer em invasão de competência legislativa constitucional. b) Garantia para execução das obras – Poderia ser oferecida uma semelhante àquela do art. 40, § 2º, da Lei 6.766/79 (LGL\1979\27)? Entendemos que sim, desde que reconhecido no documento a possibilidade de cobrança direta das despesas. c) Repasse das despesas com a execução das obras – É perfeitamente legal, desde que a cobrança seja efetuada mediante a demonstração dos custos já incorridos em determinado período e o rateio pelos adquirentes seja também demonstrado. A cobrança das obras dos adquirentes é que legitima o direito destes de exigirem do loteador a execução das obras (art. 38, caput). 

7.A questão do lote mínimo de 125m² 

Seria de competência federal, estadual ou municipal? Seria federal, padrão mínimo de direito urbanístico? Seria norma de direito civil?

O Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo entendeu que os Municípios podem fixar a metragem mínima dos lotes, com superioridade sobre a lei federal (Ap. Cív. 2.641-0 – Diadema; Ap. Cív. 2.682-0 – Piracicaba). Segundo, portanto, essa orientação do Conselho, o desdobro, que inobstante não esteja submetido à Lei, devesse atender ao lote mínimo de 125m², conforme orientação da Corregedoria-Geral da Justiça, não precisa atender tal mínimo, mas sim aquele previsto em Lei Municipal. A nós nos parece legal o padrão mínimo urbanístico da lei federal. Questão paralela, referida ao desdobro, surgiu no caso de se tratar de divisão de lotes de grande porte. O Prov. 2/83, da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo, deixa ao prudente critério do Cartório decidir quando se trata de desdobro ou desmembramento.

8.Anuência prévia nas regiões metropolitanas

A questão que surgiu, desde a edição da Lei 6.766/79 (LGL\1979\27), foi a seguinte: todos os parcelamentos urbanos na Região Metropolitana estão sujeitos à anuência prévia? O art. 13 da Lei, no inc. II, previa que caberia a anuência prévia da autoridade metropolitana: “II – quando o loteamento ou desmembramento localizar-se em área limítrofe do Município, ou que pertença a mais de um Município, nas Regiões Metropolitanas ou em aglomerações urbanas, definidas em lei estadual ou federal”. Discutiu-se então se seriam três ou quatro as hipóteses contidas no inciso. Em nosso livro Loteamento e Desmembramentos Urbanos, Sugestões Literárias, 1980, p. 63, defendemos a interpretação de que se tratam de quatro hipóteses: parcelamentos em municípios integrantes de regiões metropolitanas localizados em áreas limítrofes dos municípios; parcelamentos em municípios integrantes de regiões metropolitanas, que abranjam mais de um município; parcelamentos em áreas limítrofes de município que faça parte de aglomerações urbanas; e parcelamentos em áreas que abranjam mais de um município, em aglomerações urbanas. Outros defenderam a interpretação de que se tratam de três hipóteses: parcelamentos em áreas limítrofes de município ou que abranjam mais de um município; nas regiões metropolitanas e nas aglomerações urbanas. 

9.Indenização em desapropriação de glebas loteadas, mas não registrado o loteamento

O art. 42 da Lei 6.766/79 (LGL\1979\27) reza: “Nas desapropriações não serão considerados como loteados ou loteáveis, para fins de indenização, os terrenos ainda não vendidos ou compromissados, objeto de loteamento ou desmembramento não registrado”. Essa disposição causou polêmica, pois sua interpretação gramatical levaria à inconstitucionalidade, face ao mandamento da justa indenização prevista no art. 153, § 22, da CF (LGL\1988\3). O STF, no entanto, deu interpretação à norma que a salva desse vício, dizendo: “Na interpretação dessas normas, há que se ter em conta as circunstâncias de cada caso, sob pena de frustrar-se o princípio da justa indenização, contemplado no § 22 do art. 153 da CF (LGL\1988\3). O que as normas afastam, sem ludibriar o princípio, é a indenizabilidade do loteamento teórico ou inexistente, e não a composição do efetivo desfalque patrimonial. Recurso extraordinário conhecido e provido” (STF – 1ª T. – RE 99.526-SP – Rel. Min. Rafael Mayer – j. 25.03.1983 – v.u.).

10.Acesso à via judicial quando o loteamento não estiver registrado

Pelo art. 46 da Lei 6.766/79 (LGL\1979\27) o loteador não tem acesso à via judicial, ou não poderá se defender, com base na Lei, sem apresentação dos registros dos contratos a que ela se refere. A questão que surgiu foi: é inconstitucional a norma, porque: “nenhuma lesão de direito poderá ser subtraída da apreciação judicial”, e a defesa é ampla, não condicionada a qualquer condição infraconstitucional? Entendemos que, quanto à ação, a norma não é inconstitucional, porque apenas impõe condições da mesma, mas não veda o acesso à via judicial; quanto à defesa, a norma é inconstitucional, porque impõe condições infraconstitucionais que ofendem o princípio da ampla defesa.  

11.Regularização de loteamentos – Casos presentes ou passados?

Discutiu-se se os arts. 38 e ss. da Lei 6.766/79 (LGL\1979\27) são aplicáveis somente a casos irregulares presentes ou também aos passados. Gilberto Passos de Freitas (“O Ministério Público na Regularização de loteamentos”, Bol. do Interior, Fundação Faria Lima-SP) entendeu que, “se a implantação (do loteamento) foi posterior (a 20.12.1979), as normas a serem obedecidas são as previstas na nova Lei. Se anterior, outra será a legislação a ser observada”. Para o autor mencionado, “no tocante aos loteamentos ou desmembramentos implantados anteriormente à vigência da mencionada Lei, as normas a serem observadas são as que regulam os registros públicos e a legislação local”. Já Diógenes Gasparini (Regularização de Loteamento e Desmembramento, 1983, p. 9) entende diversamente: “não há regimes jurídicos, um para urbanizações anteriores e outro para as urbanizações posteriores à Lei do Parcelamento do Solo Urbano. O disposto no art. 40, fundamento da atuação reguladora, serve tanto para uma como para outra dessas urbanizações”. O Prov. 2/83 da Eg. Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo contém uma Seção (VI) que trata dos “Loteamentos Irregulares” (Subseção II) e o seu item 153 determina: “Não se aplicam os arts. 18 e 19 da Lei 6.766/79 (LGL\1979\27) aos registros de loteamentos ou desmembramentos requeridos pelas Prefeituras Municipais, ou, no seu desinteresse, pelos adquirentes de lotes, para regularizar situações de fato já existentes, sejam elas anteriores ou posteriores àquela lei.” De nossa parte entendemos que ato ou situação irregular encontrada pela Lei 6.766/79 (LGL\1979\27), e que continua irregular perante ela, está sob sua égide, devendo qualquer regularização da mesma situação ser procedida legalmente, de acordo com suas prescrições, porque ato (ou situação) irregular ou ilegal, evidentemente, não encontra amparo perante lei nova, no ato jurídico perfeito, de que nos fala a Constituição. No entanto, atendendo às situações consolidadas, em São Paulo, consagrou-se uma posição intermediária, isto é, exigindo-se tão só que os loteamentos irregulares atendam à legislação local da época de sua implantação quanto às obras exigidas. É o que ficou expresso na Ap. Cív. 1.702 – Capital, do Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo: “Todas essas dificuldades, frequentemente apresentadas diante das autoridades administrativas e judiciárias, fizeram com que se pensasse em solução intermediária, que pudesse anteder o premente interesse dos adquirentes de lotes, das Prefeituras, e sem ferir princípios básicos do registro imobiliário [...]. Consagrou-se, portanto, entendimento que já vinha sendo esposado, à época da legislação revogada, por este Conselho Superior da Magistratura, Eg. Corregedoria-Geral da Justiça e Juízes Corregedores do Estado (cf. Ap. Cív. 376-0 – São Roque, e Proc. CG-29/80).” Concluiu ainda o Conselho: “Com o advento dessa expressa disposição legal (art. 40), ficou claro que a Municipalidade poderá, sempre que irregularidades forem constatadas, agir em defesa de seus interesses, bem como dos adquirentes de lotes”. Assim, a suspensão dos pagamentos (art. 38) cabe sempre que o loteamento, seja anterior ou não à Lei, não se encontrar regularmente executado, mesmo que já registrado. A regularização, que é uma faculdade e não uma obrigação da Prefeitura, segundo o art. 40, caberá sempre, seja o loteamento anterior ou posterior à Lei 6.766/79 (LGL\1979\27)

Biografia do Autor

Toshio Mukai, Procuradoria do Município de São Paulo (São Paulo, São Paulo, Brasil)

Doutor em Direito Administrativo pela USP. Procurador do Município de São Paulo aposentado. Advogado em São Paulo.

 

Publicado

2020-12-15

Como Citar

MUKAI, Toshio. Aspectos polêmicos da Lei de Parcelamento Urbano: Controversial aspects of the Urban Installment Law. Revista de Direito Administrativo e Infraestrutura | RDAI, São Paulo: Thomson Reuters | Livraria RT, v. 4, n. 15, p. 349–358, 2020. DOI: 10.48143/RDAI.15.toshiomukai.1. Disponível em: https://rdai.com.br/index.php/rdai/article/view/223. Acesso em: 28 mar. 2024.

Edição

Seção

Memória do Direito Administrativo | Retrospective of Administrative Law